Opinião

As regras da audiência de instrução nos casos de improbidade

É preciso assegurar a garantia prevista na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos

9 de junho de 2021

Por Daniel Gerber e Eduardo Alexandre Guimarães*

Artigo publicado originalmente no Estadão

Recentemente, tivemos a oportunidade de escrever sobre o direito ao silêncio nas ações de improbidade administrativa. Temos defendido incessantemente, inclusive dentro de processos judiciais, a completa utilização de todo o manancial de garantias pensadas para o processo penal, no âmbito de processos de improbidade administrativa.

O motivo é simples: exatamente como no processo penal, o processo de improbidade administrativa é capaz de culminar em pena. Assim, ante a natureza punitiva desse processo, todos os direitos e garantias previstos em benefício do sujeito de direito no bojo de um processo penal, que pode culminar na imposição de pena, devem ser postos à disposição do acusado no processo de improbidade administrativa pelo mesmo motivo: pode culminar na imposição de pena.

Acontece que, tendo-se defendido o direito ao silêncio nas ações de improbidade administrativa, fomos comprimidos pela necessidade de tratar, também da dinâmica da audiência no processo de improbidade, que, por ser regido pelo CPC, é diferente da dinâmica do processo penal.

É preciso observar que a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, o tratado sobre direitos humanos mais relevante já assinado pela República brasileira, que foi internalizado no ordenamento jurídico nacional por força do Decreto nº 678/1992, assegura como sendo garantia judicial que “durante o processo, toda pessoa tem direito (…) de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada” (alínea “g” do item 2 do artigo 8). É o direito ao silêncio – nemo tenetur se detegere.

A Convenção a que se reporta não faz distinção entre a natureza do processo a que a pessoa é submetida, assegurando, apenas, que as disposições ali mencionadas são garantias judiciais.

Tendo-se em conta que estamos diante de um tratado internacional sobre direitos humanos, não seria racional limitar a incidência da proteção ofertada pela Convenção a apenas processos penais. Afinal de contas, se nem a própria Convenção o fez, tal restrição interpretativa entraria em rota de colisão com os propósitos deflagrados pelo pacto.

Assim, tem-se que é assegurado o direito ao silêncio a todo aquele que responde a processo que pode despontar no exercício do poder punitivo estatal.

A par de tal premissa, duas conclusões: a primeira é que é assegurado, sim, o direito ao silêncio nas ações de improbidade administrativa, e a segunda, é que não se pode punir quem, legitimamente, exerce um direito, sob pena de se transformar o direito em verdadeiro delito.

Dessa forma, é preciso compatibilizar o direito ao silêncio à dinâmica estatuída pelo processo civil para a audiência de instrução e julgamento.

Com efeito, o Código de Processo Civil, por um lado se mostrou autoritário, no que chamou de descobrimento da verdade, e por outro, muito tímido na tutela da não autoincriminação.

É que o art. 378 do CPC assenta que ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade – e aqui subsiste imenso receio no sentido de, se perguntarmos qual verdade, termos como resposta a “verdade real”, o que seria teratológico.

Já o art. 379 do diploma processual civil, embora assente que é “preservado o direito de não produzir prova contra si”, tem a parte final do caput somado ao inciso I, determinando que incumbe à parte comparecer em juízo, “respondendo ao que lhe for interrogado”.

Ora, se é preservado o direito de não produzir prova contra si, o acusado não pode ser obrigado a, comparecer em juízo “respondendo ao que lhe for interrogado”.

Tal contexto toma contornos de dramaticidade pelo fato de que o § 1º do art. 385 do CPC assenta que, se a parte intimada para prestar depoimento pessoal e advertida da pena de confesso, se recusar a depor, “o juiz aplicar-lhe-á a pena”.

Percebe-se que o CPC não está preparado para ser aplicado em hipóteses em que o processo possa representar o exercício do poder punitivo estatal – como é o caso dos processos de improbidade administrativa.

Ora, o Capítulo III, da Lei nº 8.429/1992, inaugurado pelo art. 12, é o capítulo “Das Penas”. Como exigir que quem está sujeito à aplicação de pena, de sanção estatal, caso opte pelo silêncio – direito expressamente assegurado na Constituição Federal, e com muito mais vigor e técnica, na Convenção Americana de Direitos Humanos –, seja punido com pena de confesso?

Não há dúvida sobre a plena aplicabilidade dos dispositivos processuais em ações que versem estritamente sobre direito privado. No entanto, a interpretação, sobretudo literal, do referido dispositivo (§ 1º, art. 385, CPC), no bojo de processo de improbidade administrativa é algo aberrante! O sujeito de direito, acusado de um ilícito de improbidade administrativa, não pode ter aplicada contra si pena de confesso por ter exercido direito ao silêncio.
Por isso, considerando a natureza punitiva da ação de improbidade administrativa, mesmo sendo a conduta apurada pelas regras e princípios reitores do processo civil, é preciso assegurar a garantia judicial prevista na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e rejeitar, completamente, a possibilidade de aplicação de pena de confesso se o acusado optar pelo direito ao silêncio.

O art. 198 do CPP, em perfeita harmonia com a Constituição Federal e também com a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, garante que o silêncio do acusado não importará confissão.

Assim também deve ser nas hipóteses de processos de improbidade administrativa. O processo civil tem que, necessariamente, ser permeado pelas garantias judiciais que limitam o poder punitivo estatal em proteção dos direitos humanos.

E por último, é imprescindível, ainda, que seja invertida a ordem das oitivas previstas no CPC. Afinal de contas, o art. 361 assenta que as provas orais serão produzidas em audiência, ou vindo-se, preferencialmente, (I) o perito e o assistente técnico; (II) o autor e em seguida o réu, para depoimentos pessoais; (III) e por último as testemunhas arroladas pelo autor e pelo réu.

Naturalmente, a ordem preferencial sugerida pelo CPC vulnera o contraditório e a ampla defesa do acusado de praticar ato de improbidade administrativa. É necessário, como corolário da proteção dos direitos e garantias processuais, ser otimizada a ordem das oitivas, combinando as disposições do processo civil com as do art. 400 do CPP, que resguarda importantíssima regra: o acusado deve ser o último a ser ouvido.

Se existe sentido em ouvir as partes antes das testemunhas em um processo que trata de relações eminentemente privadas, o mesmo não ocorre quando o objeto do processo é uma acusação de prática de ilícito suscetível à aplicação de pena – ainda que improbidade.

De tal modo, como consectário da proteção da pessoa humana, as regras da audiência no processo civil que tenha por escopo uma ação de improbidade administrativa, haja vista sua natureza punitiva, devem ser harmonizadas com garantias próprias do processo penal, fazendo, assim, que o processo passe pelo filtro da constitucionalidade e, também, da convencionalidade.

O movimento de constitucionalização do processo civil jamais deixará passar ao largo a proteção dos direitos fundamentais. Então, os Juízos é que devem adaptar as audiências em processos de improbidade à proteção de tais direitos.

*Daniel Gerber e Eduardo Alexandre Guimarães são advogados da área penal com foco em gestão de crises político e empresarial e sócios no escritório Gerber & Guimarães Advogados Associados

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