Por Hugo Funaro
Artigo publicado originalmente na ConJur
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o pedido formulado pelo estado do Rio Grande do Norte na ADC 49, “declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho ‘ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular’, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n. 87, de 13 de setembro de 1996“ [1].
Numa primeira análise, pode parecer que a decisão da ADC 49 seria apenas mais uma manifestação da Corte Suprema ratificando a orientação jurisprudencial que vigora há décadas (v.g., RE 72.026/RS-Edv [2]) e fora recentemente reafirmada, no sentido de que “não incide o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados vizinhos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia” (Tema 1.099-ARE 1.255.885/MS [3]).
De mero precedente, porém, não se trata. As decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade (ADC, ADI) produzem efeitos erga omnes e vinculantes, os quais, via de regra, se operam ex tunc (desde a edição da norma) a partir da publicação da ata de julgamento no diário oficial [4]. Nesse momento, salvo disposição em contrário, as normas declaradas inconstitucionais são formalmente excluídas do ordenamento jurídico, como se nunca tivessem existido.
Como a instituição do ICMS (e demais impostos) depende de lei complementar que defina os seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (CF, artigo 146, III, “a”), a decisão proferida na ADC 49 retira o sustentáculo jurídico imediato das leis estaduais que preveem a incidência do imposto nas transferências (internas ou interestaduais) de bens entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica
Há, porém, dúvidas quanto aos impactos materiais e temporais da decisão.
De início, um possível e preocupante efeito (colateral) da decisão proferida na ADC 49 seria a inclusão da transferência de bens na regra do artigo 155, §2º, II, da Constituição Federal, segundo a qual “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação: a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; (b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”. A aplicação da “regra do estorno” poderia sustentar-se na premissa de que, na transferência, há circulação (física/econômica) do bem entre estabelecimentos da empresa, a qual, por não ser tributada, configuraria uma hipótese de não incidência do imposto [5].
Entretanto, a análise da decisão indica solução diversa. De fato, após firmar o entendimento de que “a circulação de mercadorias que gera a incidência do ICMS é a jurídica” e que, por isso, “o mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular não é fato gerador do ICMS”, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional, entre outros, o dispositivo da LC 87/1996 que dispunha ser “autônomo cada estabelecimento do mesmo titular” (artigo 11, §3º, II).
Diante disso, é razoável concluir que as transferências de bens devam ser consideradas movimentações internas à empresa, não caracterizando “operação”, “circulação” ou “saída” que possa ensejar a cobrança ou o estorno do ICMS.
Nesse sentido, ao analisar situação similar, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os créditos das operações antecedentes deveriam ser admitidos, porém, transferidos ao estabelecimento recebedor da mercadoria “para que, na operação subsequente, fizesse jus aos benefícios da não-cumulatividade do imposto” [6].
Na ocasião, todavia, a corte não cogitou o afastamento da regra da autonomia dos estabelecimentos, como feito na ADC 49. Disso poderia resultar entendimento no sentido de que a sujeição passiva e a apuração (dos débitos e créditos) do ICMS deveriam se concentrar no estabelecimento matriz da pessoa jurídica. Por decorrência, poderia haver discussão quanto ao ente competente para tributar operações realizadas por filial localizada em unidade diversa da matriz, conforme se considere caracterizada operação interna (filial) ou interestadual (matriz).
Nada obstante, como foram mantidas intactas outras normas da lei complementar que supõem a autonomia dos estabelecimentos da pessoa jurídica (vide artigos 17 e 25) e a decisão judicial deve ser interpretada de forma congruente com o pedido formulado na ação, parece adequado entender que a autonomia dos estabelecimentos tenha sido afastada apenas para evitar qualquer interpretação de que possa haver fato gerador nas transferências de mercadorias entre eles [7]. O que não impede que se considerem independentes os estabelecimentos da empresa, quando realizem operações com terceiros, hipótese em que deverão apurar o ICMS de forma individualizada, conforme a sistemática prevista na LC 87/1996, assegurada a utilização dos créditos relativos às entradas anteriores à transferência da mercadoria para compensação com os débitos das operações subsequentes, em consonância com o princípio constitucional da não cumulatividade do imposto.
Além disso, certamente poderá haver discussões acerca da legitimidade dos débitos e créditos efetuados pelos diversos estabelecimentos do mesmo titular, nas próprias transferências de mercadorias, o que pode colocar na posição de devedor tanto as unidades federadas (débitos) quanto os contribuintes (créditos). No primeiro caso, é certo que os contribuintes já possuem direito à repetição do indébito, considerando a reiterada jurisprudência sobre a inconstitucionalidade da exigência; no segundo, porém, o eventual estorno dos créditos só pode ser exigido quando verificada a ineficácia da legislação que os suporte.
Nesse contexto, é importante definir o momento em que a orientação firmada na ADC 49 poderia justificar eventual determinação de estorno de créditos pelo Fisco. Há, pelo menos, três possíveis interpretações: a primeira seria de que a restrição se aplicaria de forma imediata e com efeito ex tunc, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da LC 87/1996; a segunda de que a restrição valeria a partir da publicação da ata do julgamento, pois somente então haveria a perda de sustentação da legislação estadual que se apoia na referida lei complementar; a terceira de que a restrição só passaria a valer após a revogação (ou declaração de ineficácia) da legislação estadual que prevê a incidência do ICMS nas transferências de bens entre estabelecimentos da empresa.
A interpretação mais razoável parece ser a terceira. Isso porque não houve declaração de inconstitucionalidade da legislação estadual fundada na LC 87/1996, o que poderia ter se dado por arrastamento (ou atração), independentemente de pedido expresso [8]. Assim, entende-se que o efeito ex tunc da ADC 49 se restringe às normas da LC 87/1996 declaradas inconstitucionais, não podendo as unidades federadas estendê-lo unilateralmente à sua própria legislação [9].
Por outro lado, ainda que a legislação estadual tenha perdido o apoio da lei complementar, suas disposições permanecem em vigor enquanto não houver revogação formal (ou ato que as invalide). Aliás, como mencionado, há muito a jurisprudência pacificou não incidir o ICMS nas situações em comento e, mesmo assim, as autoridades fiscais continuaram a exigir o imposto, com base na legislação local. A decisão da ADC 49 é um motivo adicional para afastar a cobrança do ICMS, mas isso depende de ato formal que assim o declare.
Nesse ínterim, o contribuinte tem o dever/direito de observar a legislação local, em face do princípio da presunção de constitucionalidade das leis, que implica a proteção da confiança na legitimidade dos atos estatais e a preservação dos atos praticados em conformidade com eles, como esclarece, em matéria tributária, o artigo 146 do Código Tributário Nacional [10].
De todo modo, seria conveniente que o Supremo Tribunal Federal fosse instado a se manifestar sobre o alcance e os efeitos da ADC 49 e que a matéria fosse disciplinada de modo uniforme no plano legislativo, inclusive no tocante às obrigações acessórias a serem observadas nas transferências de mercadorias, de modo a assegurar a racionalidade do sistema tributário e a não cumulatividade do ICMS, evitando-se insegurança jurídica e ineficiências na alocação de recursos.
[1] “Artigo 11 — O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é:
(…)
§ 3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte:
(…)
II – é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular.
artigo 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular ;
(…)
artigo 13. A base de cálculo do imposto é:
(…) § 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:
I – o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;
II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;
III – tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.”
[2] STF – Pleno – Rel. Min. Xavier de Albuquerque – DJ: 05/12/1975.
[3] STF – Pleno – Rel. Min. Dias Tóffoli – DJe: 15/09/2020.
[4] STF – Pleno – ADI 5.439 AgR – Rel. Min. Cármen Lúcia – DJe: 27/04/2021.
[5] “Os fatos integrantes do campo da não-incidência podem apresentar-se com diversas roupagens jurídicas. Fatos há que, por se situarem longe dos modelos de situações reveladoras de capacidade contributiva, nem sequer são cogitados como suporte material de tributos (por exemplo, o fato de respirar, ou de olhar as estrelas); outros, embora pudessem ter sido incluídos no rol das situações tributáveis, não o foram (ou porque o legislador não o quis ou porque lhe falecia competência para fazê-lo). Em todas essas situações, estamos inegavelmente no campo não-incidência“.(AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva, 21. Ed., 2016, p. 309/310).
[6] Cf. voto condutor do Min. Maurício Corrêa, no RE 199.147-0 (Pleno – DJe: 13/11/2008). Vale registrar que a pretensão do contribuinte de manutenção dos créditos de ICMS foi rejeitada porque o registro se deu no estabelecimento remetente e não no recebedor das mercadorias.
[7] Seguindo essa linha de raciocínio, teria sido mais adequado utilizar a técnica da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, que apenas exclui determinadas hipóteses de aplicação da norma que a tornem inválida à luz do Texto Constitucional, mantendo-a em pleno vigor.
[8] Cf. ADI 2645 MC/TO – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ: 29/09/2006; ADI 2.982-QO – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJ: 12/11/2004; ADI 5.835 MC – Rel. Min. Alexandre de Moraes – J: 23/03/2018.
[9] A jurisprudência do STF rejeita a teoria da transcendência dos motivos determinantes, razão pela qual a declaração de inconstitucionalidade de uma norma não implica a sua extensão a outra, não impugnada, ainda que esta padeça dos mesmos vícios (RCL 16.619 AgR/SC – Rel. Min. Edson Fachin – DJe: 19/10/2015; Rcl 31.361 AgR/PB – Rel. Min. Rosa Weber – DJe: 09/03/2020; entre outros).
[10] “Artigo 146 – A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução”.
*Hugo Funaro é advogado tributarista, sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito Econômico e Financeiro pela USP.