Por Sérgio Bessa*
Artigo publicado originalmente no Estadão
O Direito Penal, por lançar mão do aparato repressor estatal, além de sujeitar o réu a estigmatização social mesmo se decorrente de acusação criminal infundada, deve sempre atuar como soldado de reserva do ordenamento jurídico, evitando-se a criminalização de condutas que podem ser suficientemente prevenidas e reprimidas por outras esferas do Direito. Entendemos oportuno, no entanto, a recente tipificação do crime de perseguição (stalking), introduzida pela Lei n. 14.132/21, que prevê pena de reclusão de 6 meses a 2 anos, além de multa, a quem “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”.
Partindo-se do pressuposto de que a intencional invasão reiterada da liberdade ou da privacidade alheia que acarrete abalo físico ou psicológico às vítimas merece a atenção da Justiça criminal, o novo tipo penal corrige importante defasagem legislativa.
Isso porque a conduta ora tipificada não encontrava precisa adequação legal. Aproximava-se, quando muito, aos crimes de constrangimento ilegal e ameaça (arts. 146 e 147, CP)1 e à contravenção penal de molestar alguém ou perturbar lhe a tranquilidade (art. 65 do Decreto-Lei n. 3.688/41) – essa última, inclusive, revogada pela mesma Lei n. 14.132/21 –, que, no entanto, possuem elementos próprios e nem sempre convergentes à ideia de perseguição.
1 “Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”; e “Art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa”.
2 “Art. 65. Molestar alguém ou perturbar lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.
A descrição mais bem acabada do crime traz maior segurança jurídica e evita a possibilidade de casuísmos e interpretações elásticas, evitando a responsabilização criminal por condutas não previstas taxativamente em lei.
Além disso, ao prescrever que o crime pode se aperfeiçoar por qualquer meio – e aqui se tem o maior acerto do legislador –, coíbe-se a perseguição digital (cyberstalking), não por isso menos invasiva e danosa à vítima. Ao contrário, com a cada vez maior interação social pelas redes sociais, é fundamental que seja possível responsabilizar aqueles que repetidamente atormentam e acossam terceiros por meios virtuais.
A criminalização do stalking, no entanto, deveria ter sido acompanhada da possibilidade de serem empregadas medidas protetivas de urgência, à semelhança daquelas previstas pela Lei Maria da Penha (arts. 22 a 24), essas somente aplicáveis caso a perseguição ocorra num contexto de violência doméstica, o que nem sempre é o caso. É certo que o propósito maior de quem bate à porta das autoridades dizendo-se perseguido é o imediato afastamento, físico e digital, de sua vida daquele que lhe perturba.
Há, ainda, algumas lacunas deixadas pelo legislador que certamente deverão ser preenchidas pela doutrina e jurisprudência. Sem a pretensão de esgotar o tema, citamos algumas delas:
– Para a configuração do crime exige-se que a conduta seja reiterada, de modo que uma ação isolada de perseguição se trata de fato atípico. Remanesce a dúvida, porém, de quantos atos são necessários para a consumação do delito. Bastariam dois ou a reiteração implica em um maior número de eventos? E qual o intervalo de tempo para que se possa separar um ato de outro? No caso de uma pessoa enviar, em intervalo de horas, dezenas de mensagens de texto invasivas e agressivas à outra, haveria reiteração ou se trataria de ato isolado?;
– Se a reiteração (sequências de atos) é requisito para a configuração do crime, nos parece afastada a possibilidade de majoração da pena sob o instituto do crime continuado (art. 71 do Código Penal);
– Há possibilidade de concurso formal/material entre os crimes de perseguição e ameaça e constrangimento ilegal ou o primeiro absorveria os demais?;
– Por fim, os Tribunais terão um importante papel em, analisando detidamente as particularidades dos casos concretos, formar segura e objetiva jurisprudência para separar o joio do trigo, reservando a incidência da norma penal a casos que causarem efetiva e comprovada perturbação psicológica ou física às vítimas e afastando-a a casos de mero incômodo e mera irritação ao ofendido, ainda que reiterados.
Por ora, fica a impressão de ter havido importante avanço com a tipificação do stalking, sem prejuízo de seu aperfeiçoamento pelos operadores do Direito diante dos casos concretos que se apresentarem.
*Sérgio Bessa, especialista em Direito Penal do escritório Peixoto & Cury Advogados