Por José Ricardo de Bastos Martins e Antonio Carlos Aguiar*
Artigo publicado originalmente no Estadão
A imprensa divulgou, recentemente, uma investigação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por formação de cartel entre departamentos de recursos humanos. Tratava-se de um caso inédito, que alcançava 37 empresas e 108 funcionários. Se condenadas, as investigadas poderiam ter de pagar multas que variavam de 0,1% a 20% do faturamento bruto. E mais: os executivos poderiam também ser penalizados, com multas de R$ 50 mil a R$ 2 milhões.
A investigação seria derivada de um acordo de leniência. O processo teria sido aberto por indícios de fixação de condições comerciais e troca de informações concorrencialmente sensíveis no mercado de trabalho. Haveria, ainda, a suspeita de que as empresas atuariam de forma coordenada para estabelecer valores e condições para contratação de mão de obra e gestão de pessoas. Essas condutas anticompetitivas teriam sido operacionalizadas por um grupo de cooperação informal entre os concorrentes, que até nome tinha.
Até pouco tempo atrás, as investigações conduzidas pelos órgãos de defesa da concorrência tinham como alvo principal as áreas financeira e comercial das empresas, departamentos que – usualmente – são vistos como potenciais geradores de condutas que possam colocar em risco a livre concorrência.
Entretanto, nos últimos tempos, observa-se uma mudança nesta abordagem. O foco agora passa a se estender a outras áreas do negócio. A origem deste movimento tem a ver com a complexidade das relações atuais.
Uma complexidade que liga um sem o número de coisas, conectando-as umas às outras. Quanto mais partes um sistema tem, e quanto mais ligações existem entre essas partes, mais complexo tudo se torna.
Não há mais, em especial no mundo empresarial, peças e movimentos estanques e individualizados, que transitam de modo independente, não se misturando ou interagindo entre si, onde a forma de atuação de uma não traga reflexos positivos ou negativos na outra.
Por isso mesmo, especialidades e especialistas têm de conversar, por meio de um diálogo amplo e multidisciplinar. Com o crescimento do número de possibilidades, cresce igualmente o número de relações entre os elementos. Logo, cresce a complexidade.
Neste episódio, em que o Cade abriu uma investigação contra diversas empresas e funcionários da área da saúde, como farmacêuticas e fabricantes de equipamentos médicos, em função de alegadas trocas de informações sobre o mercado de trabalho, o exemplo fala por si e traz à evidência essa nova forma imperiosa de visão e atuação empresarial.
Mercado de trabalho é formado por pessoas que têm constitucionalmente direito à privacidade e à dignidade. Não há como separar o negócio das pessoas. É impossível dissociar as atividades empresariais da sua responsabilidade social. O propósito social tem de ser o mote não só da subsistência econômica do empreendimento, mas, da sua própria razão de existir. Por certo, aqui, é incabível qualquer comentário quanto ao conteúdo da investigação. O foco é outro.
Diante desta crescente complexidade nas relações entre os diversos atores da economia moderna, onde a busca pelo lucro vem sendo cada vez mais relativizada pela constatação de que outros valores – como aqueles representados pela atualmente tão propalada sigla ESG (ou ASG, em português) – são igualmente relevantes para o sucesso do negócio uma decodificação deste catálogo de novidades, diversidades e oportunidades. É preciso colocar tudo em prática pelos atores responsáveis.
O desafio está justamente em criar protocolos comunicativos, funcionais e interdisciplinares de convívio e suporte de informações, controle de dados pessoais, viabilização estrutural da livre concorrência, mantença da reputação das empresas e pessoas com as quais se relacionam e desenvolvimento sinérgico-funcional para sua sustentabilidade.
É preciso refletir as ferramentas como os acordos de leniência e atuação de órgão que até pouco nada tinha a ver com relações trabalhistas. Este viés de atuação ultrapassa os limites do Direito do Trabalho. A complexidade resolutiva entre diversas áreas mostra-se, pois, mais do que presente. É essencial. Vale lembrar que o Cade foi pioneiro na estruturação de acordos de leniência no país, antes mesmo da sua popularização advinda com Operação Lava Jato.
Entretanto, é necessário que estejam presentes certos requisitos para que uma empresa ou indivíduo possa propor um acordo de leniência. O acordo de leniência é instrumento disponível apenas ao primeiro agente infrator a reportar a conduta anticoncorrencial ao Cade, trazendo benefícios tanto no âmbito administrativo como criminal. Entretanto, ainda que com repercussões menos relevantes, todos os demais investigados na conduta anticompetitiva são elegíveis para a assinatura de um Termo de Cessação de Conduta, gerando benefícios na seara administrativa, mas sem previsão de benefícios automáticos na seara criminal.
Quando pensamos nos fatos relacionados à investigação aqui referida, surge a dúvida (e – imediatamente – a preocupação) quanto aos limites daquilo que pode ou não ser objeto de discussão entre empresas de um mesmo setor econômico. Por óbvio, não são quaisquer trocas de informação que poderão caracterizar risco de violação à livre concorrência. A troca de ideias, dentro de determinados limites, é comprovadamente salutar para o mercado como um todo, verdadeira razão de ser de diversas associações. Deve-se, portanto, procurar identificar o tipo de conduta a ser evitada, com base em regras prévias e expressamente estabelecidas, de acordo com as melhores práticas de mercado.
Os dispositivos previstos na Lei do Cade são bastante amplos, fazendo com que praticamente qualquer atividade que tenha o condão de limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa sejam passíveis punição, independentemente de culpa, e ainda que os resultados pretendidos não tenham sido alcançados.
É possível concluir que, para situações complexas, soluções de mesma complexidade têm de ser apresentadas. Elas somente conseguem ser construídas por meio de um diálogo amplo, por intermédio de interlocutores e “fazedores” de diversas áreas de atuação, que reflitam exaustivamente sobre o tema, para entender a situação, compreendendo os diversos pontos de vista, preparando e idealizando propostas com visão SWOT, para futura validação por protocolos de segurança hábeis, visíveis e com ampla publicidade para todos os interessados. Canais como códigos de ética e conduta, políticas de compliance e outros meios de integração e formação comportamental de eticidade são válidos e recomendáveis, sempre, contudo, sob o enfoque e ótica da diversidade, de quem está na confecção e para quem será destinado.
*José Ricardo de Bastos Martins e Antonio Carlos Aguiar, sócios de áreas diferentes, mas interligadas estrategicamente do Peixoto & Cury Advogados