Por Cecilia Mello*
Artigo publicado originalmente no Estadão
Intensificam-se, diariamente, novos métodos de interação social na internet, com dinâmica bilateral ou por meio de grupos, de forma privada ou pública, com evidências de significativo poder de disseminação de opiniões, relatos, fatos, dados, fotos, mídias, em síntese: informações.
O aprimoramento da tecnologia da informação e a diversificação de soluções apontam para uma curva ascendente na utilização da comunicação digital. O uso de redes no Brasil aumentou significativamente nos últimos anos, saltando de 18% de lares conectados, em 2008, para mais de 70%, em 2019 (TIC Domicílios 2019)[1]. A pesquisa referente a 2019 baseou-se em coleta de dados realizada entre outubro/2019 e março/2020, portanto fora do período de pandemia, apontando que novos dados poderão demonstrar um crescimento ainda maior.
A liberdade de manifestação do pensamento, um dos direitos mais caros da intimidade do indivíduo, a par de estar inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição[2], externa a personalidade, compartilha o conhecimento e, em seu viés social, atrela-se de maneira indissociável à divulgação de fatos e informações. Reflete também a liberdade de imprensa. Em contrapartida, a nossa Constituição garante a todos o direito à informação, o direito de receber notícias e opiniões, seja pela imprensa, seja por outros meios.
Evidentemente que todos esses direitos encontram seus limites na licitude das práticas que envolvem, na garantia que a Constituição também confere a outros direitos e liberdades. Assim, entrelaçam-se direitos e limites, formando uma teia que, rompida, pode gerar consequências nas mais diversas áreas do direito, desde o direito de resposta, a responsabilidade civil em razão do dano causado, até a responsabilização criminal.
O Supremo Tribunal Federal tem sólido posicionamento sobre o direito fundamental à liberdade de expressão, consubstanciado especialmente no julgamento da ADPF 130[3], onde o direito de crítica, componente essencial do Estado Democrático de Direito, restou resguardado para a proteção da própria democracia. Recentemente, e porque o direito à liberdade de expressão está em permanente processo de ajustamento, a mesma Corte, no julgamento da ADPF 572[4] sobre fake news, consolidou que “nenhuma disposição do texto constitucional pode ser interpretada ou praticada no sentido de permitir a grupos ou pessoas suprimirem o gozo e o exercício dos direitos e garantias fundamentais. Nenhuma disposição pode ser interpretada ou praticada no sentido de excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”[5].
Quando se fala de informação veiculada pela imprensa, a identificação da origem e a veracidade da informação são sempre rastreáveis e, consequentemente, passíveis de verificação e responsabilização. O problema reside exatamente no grande fluxo de informações que circula nas redes, que não tem origem definida e muito menos credibilidade. São DESINFORMAÇÕES articuladas com o objetivo de corromper a importância dos fatos e das evidências científicas com o nítido objetivo de difundir e firmar posições ideológicas, valendo-se de apelos emocionais. É uma desinformação profissionalizada, que corrói a democracia. É a prevalência da pós-verdade.
No livro Pós-Verdade, Matthew D’Ancona ainda aponta a perda de nexo ou vínculo com o factual, em razão de uma escolha pessoal do indivíduo que, dentre várias informações, opta por aquela que mais lhe agrada ou satisfaz, de acordo com o seu próprio universo. Ocorre que essa escolha individual desconectada decorre exatamente de um processo informativo calcado na desvalorização dos fatos e das evidências científicas em nome de interesses políticos[6]. Ou seja, é um processo informativo distorcido e contaminado, previamente articulado, e que se expandiu brutalmente no contexto pandêmico, terreno fértil para manipulação de fatos em prol das mais diversas ambições, que não o genuíno interesse público.
É nesse cenário onde a “não verdade” e a “não ciência” servem de pilares para a não implementação de políticas públicas essenciais e eficientes, colocando em risco a sociedade e própria democracia, que os jornalistas têm uma função de extrema importância e responsabilidade. A partir de competências investigativas e interpretativas especializadas e diferenciadas, os jornalistas e, em particular, os verificadores de fatos independentes, podem inserir-se dentro desse processo performativo profissionalizado de falsas informações, impedindo a conexão entre os maus atores e a população ou mesmo facilitando o rompimento dessa conexão com a “não verdade” [7].
A checagem de fatos especializada pode ser uma resposta para a falta de autenticidade e de credibilidade, auxiliando a sociedade civil e a mídia de notícias na defesa da verdade, contribuindo para a democracia.
Assentada a importância da imprensa e dos verificadores de fatos em particular, salta aos olhos a tramitação de projetos de leis objetivando obstruir o célere acesso aos fatos, à ciência e à verdade. Todos eles[8], de uma forma ou de outra, pretendem implantar disciplina específica acerca da dinâmica de verificação de fatos. Determinam um contraditório prévio à declaração de falsidade, a ser travado com o “autor do conteúdo”, atribuem responsabilidade específica para o exercício da atividade e severas penalidades pelo descumprimento das obrigações que estabelecem. Partem da premissa de insuficiência da nossa legislação e se descuidam no trato de disciplina inserida no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Mais, a matéria está sendo discutida no âmbito do Recurso Extraordinário 1.037.396, interposto pelo Facebook Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral[9].
A motivação desses projetos de lei é lastreada na liberdade de expressão. Estranhamente, em prol da liberdade de uns, pretende-se impedir ou dificultar a liberdade de outros, mas de acesso à verdade.
[1] Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC domicílios 2019. CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Disponível em: https://www.cetic.br/pt/arquivos/domicilios/2019/domicilios/. Acesso em: 20 fev.2021
[2]Constituição Federal, Art. 5º, inc. IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
[3] STF: ADPF 130, Relator: Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009.
[4] STF: ADPF 572, Relator: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2020.
[5] STF: ADPF 572, voto do Relator: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2020
[6] D`ANCONA, Mathew , Pós Verdade. Faro Editorial:2018, Barueri, SP, Brasil. Pags. 57
[7] LUENGO,Maria; GARCIA-MARIN, David, The performance of truth: politicians, fact-checking journalism, and the struggle to tackle COVID-19 misinformation. American Journal of Cultural Sociology (2020) 8:405–427. https://doi.org/10.1057/s41290-020-00115-w
[8] PL nº127/2021; PL nº225/2021; PL nº246/2021; PL nº213/2021
[9] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549
*Cecilia Mello, criminalista, sócia do Cecilia Mello Advogados, foi desembargadora federal por 14 anos no TRF-3