Por Theófilo Miguel de Aquino, Elaine Silva Prates e Luiza Veronese Lacava*
Artigo publicado originalmente na ConJur
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 10 de fevereiro o Projeto de Lei Complementar (PLP) 19/2019, que trata da autonomia do Banco Central do Brasil (BCB). O PLP, de autoria do senador Plínio Valério (PSDB-AM), foi apresentado em fevereiro de 2019, mas a discussão sobre o assunto é muito mais antiga no Congresso Nacional. Os primeiros projetos sobre o tema datam de 1989 e há pelo menos outras 16 proposições em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado atualmente, uma delas, inclusive, de autoria do próprio Ministério da Economia, o PLP 112/2019.
Foi o PLP 19/2019, no entanto, que ganhou destaque em 2020. Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, a autonomia do BCB vinha sendo apontada como prioritária pela equipe econômica do governo federal e foi estabelecido um acordo entre os presidentes das casas para que o tema fosse primeiro votado no Senado e, somente então, discutido na Câmara. Em novembro de 2020, o Senado aprovou o projeto com modificações na redação original. Neste ano, após eleições dos novos presidentes das duas casas do Congresso Nacional, a proposição tramitou diretamente no Plenário da Câmara, devido ao regime de urgência, recebendo 339 votos favoráveis, 114 contrários e registrada apenas uma abstenção. Justamente porque o conteúdo do projeto não sofreu modificações na Câmara, o texto segue para sanção do presidente da República.
O que muda
As três principais mudanças acarretadas pela aprovação do PLP 19 são a instituição de mandato com tempo definido para presidente e diretoria da autarquia; definição de critérios para sua deposição e, ainda, estabelecimento de novos objetivos para a autoridade monetária. São mudanças importantes que consolidam e inovam, concomitantemente, a prática institucional na Nova República.
Nos últimos 20 anos, o Banco Central adquiriu autonomia prática na condução de suas funções, muito embora não contasse com independência formalizada em lei. A reforma do Conselho Monetário Nacional (CMN) e o fim dos ciclos de hiperinflação na década de 1990 alteraram o contexto institucional em que o BCB operava. De um lado, apesar de ainda ser formalmente o órgão de cúpula do sistema financeiro nacional, o CMN passou a ser integrado somente pelo Ministério da Economia e por representantes do Banco Central. A mudança permitiu que, na prática, as decisões do CMN pudessem ser tomadas em consonância com as prioridades do BCB. De outro lado, com exceção de episódios pontuais, a aquisição de estabilidade de preços tornou a intervenção do Poder Executivo Federal no CMN muito custosa politicamente.
O resultado é que o Banco Central pôde agir de modo independente com relação ao Poder Executivo federal desde então. Evidência para tanto é a baixa rotatividade no posto de presidente da autarquia, ainda que o cargo fosse passível de demissão a qualquer momento e sem justificativa pelo presidente da República. Desde o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, adotou-se o costume de que cada novo presidente da República indique seu “banqueiro central” sem demiti-lo ao longo de seu mandato.
Tal arranjo foi funcional, mas era sujeito a instabilidades. Por isso, o PLP 19/2019 institui mandato fixo de quatro anos para presidente e diretoria do Banco Central. A nomeação permanece como competência da presidência da República, bem como sua aprovação pelo Senado Federal.
Ademais, os empossados no cargo não poderão ser demitidos pelo Poder Executivo em hipótese alguma. A destituição acontece somente em caso de renúncia, enfermidade incapacitante, condenação que proíba acesso a cargos públicos ou, ainda, em caso de desempenho recorrente comprovadamente insuficiente para com os objetivos do Banco Central. Na última hipótese, cabe ao CMN, em sua maioria composto por integrantes do próprio BCB, indicar a exoneração à Presidência da República, cuja confirmação deve ser feita pelo Senado Federal.
O objetivo prioritário da autarquia permanece sendo o controle da estabilidade de preços. Subsidiariamente, o PLP introduz a meta de manutenção dos níveis de emprego e suavização das flutuações na atividade econômica. Esse é o ponto mais polêmico. Afirma-se que o BCB precisa ter apenas um objetivo primordial para cumpri-lo com competência; metas a mais dariam espaço para má gestão da inflação e para ingerência de agentes políticos. É de se comprovar na prática se a preocupação procede.
Além disso, a mudança foi alvo de outras críticas, levantadas pelos seus opositores: questiona-se o timing da aprovação, que tramitou em regime de urgência e passou na frente de questões de ordem econômica consideradas mais essenciais, como a renovação do auxílio emergencial. Do ponto de vista político, a aprovação foi considerada um aceno do novo presidente da Câmara, Arthur Lira, às pautas da ala econômica do governo, representada pelo ministro Paulo Guedes.
Críticas à parte, importa saber, no entanto, que todas essas inovações não são uma “jabuticaba brasileira”, como demonstra a experiência internacional.
A experiência comparada
Ao longo dos últimos meses, o Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN), associação de pesquisa em tecnologia financeira da qual os autores são parte, vem publicando uma série de estudos comparativos sobre o funcionamento de bancos centrais ao redor do globo. O timing da publicação é interessante, pois permite traçar paralelos entre as principais economias mundiais e as propostas de reforma do Banco Central do Brasil.
Algumas descobertas merecem destaque. De todos os países das Américas analisados — Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, EUA, México e Peru —, atualmente apenas o Banco Central do Brasil não estipula tempo definido para mandato do presidente da instituição. Na Oceania, por sua vez, é possível observar o mesmo padrão: Austrália e Nova Zelândia estipulam tempo máximo para permanência no cargo. Na Ásia, apesar da diversidade de países analisados (19 ao total), apenas na China e em Hong Kong o posto de presidente do BC é de livre nomeação e destituição. O cargo é exercido por tempo determinado em países tão diversos quanto os do Oriente Médio (Emirados Árabes e Irã), Ásia Meridional (Bangladesh e Índia), e do Sudeste Asiático (Filipinas e Tailândia).
No que diz respeito ao tempo de mandato, verifica-se que o período proposto pelo PL 19/2019 (de quatro anos, permitida uma recondução) é comumente encontrado nos Bancos Centrais estrangeiros. Esse é o tempo estipulado, por exemplo, por Estados Unidos, Coreia do Sul, Colômbia, Turquia e Emirados Árabes. Também são bastante comuns os mandatos de cinco anos — a exemplo do Chile, Peru, Nova Zelândia, Índia, Irã, Tailândia e Japão. No geral, os tempos de mandato não costumam exceder esse limite, com poucas exceções: chegam a sete anos no Canadá e na Austrália.
O procedimento de nomeação do presidente e diretores, por outro lado, pode variar bastante entre os Bancos Centrais estudados. Parece ser um bom indicativo, entretanto, que a nomeação permaneça fracionada entre duas esferas de poder: o Executivo, que indicará os nomes, e o Senado, que votará pela sua aprovação. Possuem formas similares de nomeação a Argentina, México, Peru, Coreia do Sul, Indonésia e Japão, países nos quais a competência é compartilhada entre Executivo e Congresso. Em outras nações, participam da nomeação o ministro do Tesouro ou das Finanças (Austrália, Nova Zelândia, Hong Kong); os demais diretores do banco e por vezes o presidente em exercício (Canadá, Chile); um conselho de ministros (Irã, Emirados Árabes); ou o chefe do Poder Executivo, segundo recomendação de membros do governo (Estados Unidos e Israel).
Esse arranjo de checks and balances entre as instituições republicanas garante, ao menos idealmente, a distribuição de poder político, e diminui a influência que um órgão pode ter sobre as decisões do Banco Central — de novo, idealmente — aproximando-o de uma tomada de decisão mais direcionada ao interesse público. Nesse sentido, também é interessante observar o esquema de rotação de presidente e diretores previsto pelo Projeto de Lei 19/2019, no qual a nomeação dos membros da diretoria colegiada é fracionada entre os quatro anos da legislatura, como ocorre, por exemplo, na Colômbia, Canadá e México.
Uma das maiores apostas para garantir a autonomia do Banco Central, a instituição de hipóteses legais de destituição de presidente e membros da Diretoria, também é largamente utilizada em Bancos Centrais ao redor do mundo, de forma bastante similar à prevista no PL 19/2019. Em geral, a livre exoneração do presidente do Banco Central tende a estar presente em países não democráticos, a exemplo da China, onde tampouco há previsão de mandato fixo.
É possível tecer críticas válidas e levantar questões pertinentes a respeito do Projeto de Lei 19/2019. O que dificilmente se pode fazer, entretanto, é acusar o texto de ser inventivo, ou estranho às práticas de Bancos Centrais internacionais. No que se refere ao processo de nomeação, mandato fixo para presidentes e diretores e hipóteses legais de destituição, o BCB está meramente acompanhando o já convencionado pelas melhores práticas de seus pares.
*Theófilo Miguel de Aquino é mestre e doutorando pela FGV Direito-SP e consultor de relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN).
*Elaine Silva Prates é bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem especialização em Relações Públicas e Comunicação Organizacional pela Faculdade Cásper Líbero e atua como consultora de Relações Governamentais no Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo do Numerário (ITCN).
*Luiza Veronese Lacava é advogada, mestranda em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP, e consultora de Relações Governamentais no ITCN