Opinião

A dissidência quanto à retroatividade do acordo de não persecução penal

Negativa do ANPP retira do réu um direito material que deveria lhe assistir

3 de março de 2021

Por Daniel Gerber e Rafael Ariza*

Artigo publicado originalmente na ConJur

É possível observar, junto Superior Tribunal de Justiça, importante dissidência quanto à aplicabilidade do artigo 28-A do Código de Processo Penal para processos que já estavam em andamento quando da promulgação da nova lei.

A 6ª Turma entende que a novatio legis deve ser aplicada aos processos ainda ativos, em qualquer que seja a sua fase, e assim o faz por força do claro conteúdo material que a nova regra processual traz consigo. Nesse sentido, decidiu-se no agravo regimental em Habeas Corpus nº 575.395/RN, de relatoria do ministro Nefi Cordeiro, onde resta expresso que: “É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF)”.

A 5ª Turma, de outra banda, entende que “o tema já foi enfrentado por esta Corte Superior, chegando-se à conclusão de que o art. 28-A possui, sim, eficácia retroativa, para abranger as infrações penais cometidas antes de sua entrada em vigor; no entanto, o ANPP somente será viável se ainda não tiver sido recebida a denúncia”.

Razão assiste à 6ª Turma, pelos motivos que passaremos, brevemente, a expor.

Do conteúdo material da norma processual

Como facilmente se observa por suas consequências, o comando normativo insculpido no artigo 28-A do Código de Processo Penal carrega norma processual de natureza material ou mista, que “são aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante a investigação ou durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de direito material” [1].

Sobre o tema leciona Renato Brasileiro de Lima, esclarecendo que: “(…) b) normas processuais materiais (mistas ou hibridas): são aquelas que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual penal. Normas penais são aquelas que cuidam do crime, da pena, da medida de segurança, dos efeitos da condenação e do direito de punir do Estado (v.g., causas extintivas da punibilidade). De sua vez, normas processuais penais são aquelas que versam sobre o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Assim, se um dispositivo legal, embora inserido em lei processual, versa sobre regra penal, de direito material, a ele serão aplicáveis os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei mais benigna” [2].

Ora, se inequívoco que a disciplina do acordo de não persecução penal no ordenamento processual penal atinge o próprio direito de punir pelo Estado e a extinção da punibilidade do agente com cumprimento integral das condições (artigo 28-A, §13, do Código de Processo Penal), de imediato se conclui pela natureza híbrida da norma e sua correspondente retroatividade.

A posição do Supremo Tribunal Federal

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça alicerça sua posição pela não retroatividade da norma que regula o ANPP no julgamento do Habeas Corpus 191.464, oriundo da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal e de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

Entendemos que tal argumento se encontra equivocado, eis que no Habeas Corpus nº 185.913, nos termos da decisão monocrática proferida pelo relator, ministro Gilmar Mendes, “reafirmada a prevenção deste Relator, novamente abra-se vista à PGR, no prazo regimental e com urgência dada a relevância da temática, especialmente em relação às questões-problemas apontadas na decisão monocrática que afetou o caso ao Plenário deste Supremo Tribunal Federal: a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma inserida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa em benefício do imputado? b) É potencialmente cabível o oferecimento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo? Publique-se. Brasília, 22 de dezembro de 2020”.

Percebe-se claramente que não está consolidada na Suprema Corte, nem mesmo no âmbito da 1ª Turma, a irretroatividade da norma em comento. Ao contrário, em absoluto respeito ao sistema acusatório que rege a ação penal, provocou seu titular — Ministério Público — e maior interessado em organizar sua pauta de litigância em harmonia com as novas possibilidades conciliatórias, e dele aguarda manifestação.

Significa dizer que, na pior das hipóteses, se houver dúvida quanto à aplicabilidade do artigo 28-A do Código de Processo Penal, em caráter retroativo, sobram apenas duas opções: 1) ou se resolve a dúvida em prol do acusado, conforme ditame constitucional do in dubio pro réu; 2) ou se suspende a ação penal até posicionamento final da PGR e da Suprema Corte sobre o assunto.

Do sistema acusatório

Como argumento final em prol da retroatividade do ANPP, resta a própria essência do sistema acusatório.

O projeto “anticrime” trouxe uma série de inovações ao processo penal e, entre várias, reafirmou o Ministério Público como único interessado na condução, em sentido estrito, da ação penal. Ora, a quem mais interessa a continuidade de uma ação penal, que não ao seu próprio titular?

Nos parece, portanto, que a negativa da possibilidade de tal acordo, se parte do Poder Judiciário, nega ao réu um direito material que deveria lhe assistir, e alija o Ministério Público no poder que lhe é conferido pelo sistema acusatório em acordar ou litigar em acordo com seu próprio e exclusivo entendimento, desde que respeitados os parâmetros legais.

É possível concluir, portanto, pela plena aplicabilidade do ANPP aos processos em curso, assim como pela necessidade de sobrestamento dos feitos onde tal providência for requerida pela defesa, com intimação obrigatória do titular da ação penal para que ele se manifeste quanto ao interesse em litigar ou acordar.

 

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pag. 198.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único – 4ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2016. Pag.96.

 

*Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises, compliance político e empresarial e sócio-fundador do escritório Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF, Porto Alegre-RS e Palmas-TO).

Rafael Ariza é advogado criminalista especializado em Crimes Digitais e na Internet.

 

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