Por George Rezende Moraes*
Artigo publicado originalmente no Valor Econômico
Instituída pela Constituição no âmbito da competência originária dos tribunais superiores, a reclamação é um remédio processual que concede à parte meio processual estreito para denunciar à Corte aqueles atos que ofendem a autoridade das suas decisões, com previsão infralegal expressa no artigo 985, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil (CPC).
Visando prestigiar a segurança jurídica via uniformização da interpretação das normas do direito é que o códex processual trouxe o artigo 926, traçando como objetivo central para os tribunais o dever de “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Entretanto, na contramão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não surpreende em suas inovações em busca de barrar de forma constante o acesso àquela Corte com a utilização das jurisprudências defensivas, instrumento este mais uma vez utilizado conforme decisão nos autos da Reclamação 36476/SP, entendendo não ser cabível reclamação para garantir a aplicação de entendimento firmado pelo STJ em recurso especial repetitivo.
Para fundamentar a decisão, a relatora do voto-vista, a ministra Nancy Andrighi, entendeu que o artigo 928 do CPC distingue precedente repetitivo oriundo de decisão em incidente de resolução de demandas repetitivas daquela em sede de recurso especial repetitivo. Assim, o artigo 988, IV, do CPC não abrangeu aquelas decisões proferidas nos recursos repetitivos.
Indo além, para mitigar o texto do parágrafo 5º, II, do artigo 988, que abraçou reclamação com recurso repetitivo, a Corte entendeu a impossibilidade dessa norma criar nova hipótese de reclamação.
Ainda argumentou que a vontade do legislador ao não incluir o recurso repetitivo no artigo 988 era de afastar a possibilidade de criação de mais um meio recursal, de modo a destacar o esforço das Cortes na criação de precedentes. Ao final, reafirma que devem as instâncias ordinárias assumir a interpretação dada pelo STJ e aplicá-la nos casos.
Em que pese as críticas necessárias ao entendimento adotado pela Corte, mormente quanto à revogação tácita de norma positivada, bem como ignorar o fato que fez parte da mesma alteração legislativa que inseriu o artigo 988, IV, devemos nos ater para as consequências desse julgado para os casos julgados sob a égide do Juizado Especial no momento em que esvaziou-se completamente a possibilidade de reclamação frente às decisões das Turmas Recursais que não observarem as decisões proferidas em recurso especial repetitivo.
Isso porque em decisão de setembro de 2019 (na Reclamação 11838/MS) a Corte Especial do STJ entendeu que o incidente de resolução de demanda repetitiva é um instituto que em regra é direcionado para os tribunais estaduais e regionais federais, sendo somente possível sua instauração no STJ naqueles casos de competência ordinária ou originária.
A reclamação era o único mecanismo garantidor de força dos julgados daquela Corte. Assim, com seu total esvaziamento em ambos os julgados, corre-se o risco de que os Juizados Especiais venham a se afastar cada vez mais dos entendimentos consolidados.
Embora num sistema ideal os procedentes vindos das Cortes superiores devam ser naturalmente respeitados por todo o sistema de Justiça, o que se vê na prática é uma cultura em que precedentes são ignorados, tornando necessários mecanismos garantidores da eficácia das decisões.
A peculiar estrutura dos juizados, operado apenas com juízes de primeira instância e tendo com um dos princípios a celeridade, guarda em si o potencial de ofertar uma prestação jurisdicional deficiente. Assim, desconstruir o instrumento da reclamação pode dar oportunidade a decisões incorrigíveis, discrepantes de todo o pensamento jurídico e possibilitando a criação de um direito peculiar e único, revigorando tradições voluntárias ou isolacionistas que, embora venham sendo fortemente rompidas, ainda marcam, em alguns momentos, a construção do direito.
Assim, é de se concluir que todo o esforço anterior do STJ em editar norma de modo a dotar de força o instrumento da reclamação para que seja este mecanismo capaz de afastar as incertezas inerentes dos julgados do juizados, restou subjugada pela Reclamação 36476/SP.
A ideia de diminuir o número de ações que chegam àquela Corte para que ela “trabalhe menos para que trabalhe melhor”, esbarra na questão de que não estamos no mundo ideal em que precedentes são observados.
O seu dever constitucional de uniformizar a interpretação da lei federal fica, a partir desse julgamento, claudicante, já que um dos mecanismos para fazer valer a autoridade das decisões deixará de funcionar em sua plenitude.
*George Rezende Moraes é advogado associado do Fragata e Antunes Advogados, com especialização em Integração Regional da União Europeia pela Universidade de Alcalá de Henares e mestre em Direitos Fundamentais e Democracia