Opinião

A todas e todos: magistratura e ideologia

Poder Judiciário não pode realizar prejulgamentos

25 de novembro de 2020

Por Otavio Amaral Calvet*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Magistrados são seres humanos. Magistrados integram a sociedade e, portanto, vivenciam seus dilemas e anseios. Magistrados possuem sentimentos, chocam-se com os fatos da vida, alegram-se e se entristecem como todos. Magistrados podem, como cidadãos, adotar uma ideologia. Magistrados não são neutros. Devem, entretanto, ser imparciais para garantir que todo julgamento observe o devido processo legal. Somente um julgamento isento de carga ideológica pode gerar uma decisão justa.

A questão não é nova, mas se renova a cada acontecimento que provoca repercussão nacional, como o triste episódio da morte de João Alberto Freitas nas dependências de uma loja da empresa Carrefour em Porto Alegre. Sem analisar a questão em concreto, até porque existem repercussões trabalhistas que poderão ser objeto de ação perante a Justiça do Trabalho, que integro, restou evidente a rapidez com que a mídia e as diversas manifestações em redes sociais concluíram os fatos, emitindo certezas sobre as condutas dos envolvidos, expondo dados sensíveis da vítima (ficha criminal), valorando a ética da empresa, questionando a contratação de vigilantes terceirizados etc.

Indignado, naturalmente o cidadão quer expressar sua revolta, externalizar seus sentimentos, mormente quando se conecta com o evento pessoalmente, como no caso citado onde se vinculou o fato ao racismo. Que o cidadão o faça, não há qualquer problema, desde que garantidos os direitos fundamentais alheios. Provoca preocupação, ou deveria provocar, quando a magistratura age dessa mesma forma, principalmente por suas instituições, como se observa na nota pública do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.

A nota, publicada em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, às 13h27, é clara ao fixar que houve “brutal assassinato” por “pessoas apontadas como seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre”. Segue dizendo que a vítima era “um homem negro, vivendo em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural”.

Não se trata, frise-se, de concordar ou discordar de tais afirmativas, mas de nos preocuparmos com o fato de que exatamente este tribunal, o TRT-4, por seus magistrados, provavelmente julgará as ações trabalhistas decorrentes do fatídico episódio. Por mais agressivo que o evento possa ser à sociedade, não pode o Poder Judiciário realizar um prejulgamento, nem fixar uma pauta abstrata de valores e conceitos que, depois, irá apreciar ao julgar o caso concreto.

Os vigilantes, pelo que a mídia anunciou, foram dispensados por justa causa pela empresa terceirizada, o que pode gerar ação trabalhista na jurisdição do TRT-4; eventual ação sobre prática de racismo pelo empregador ou tomador dos serviços dos vigilantes, com alegação de dano moral coletivo, entre outras questões, igualmente estarão sob a jurisdição deste tribunal.

O que se pode esperar de tais julgamentos além da conclusão de que os vigilantes são assassinos e agiram por motivação racial? Não é essa a posição oficial que o tribunal assume com sua nota pública? Ainda, seria possível a arguição de suspeição para os futuros julgamentos em tal jurisdição pelas empresas envolvidas?

A magistratura, por mais que sofra com as mesmas mazelas de toda a sociedade, precisa estar além, por dever inerente ao cargo. Ao magistrado cabe “comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral” (artigo 16 do Código de Ética da Magistratura), bem como “comportar-se de forma prudente e equitativa” na sua relação com os meios de comunicação social (artigo 12 do mesmo Código).

A sobriedade no falar, a cautela ao classificar fatos da vida social, a manifestação apenas nos autos conforme as provas produzidas e todos os demais deveres do cargo produzem a integridade de conduta do magistrado que “contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura” (artigo 15 do Código de Ética).

Magistrados não são eleitos, assumem seus cargos após concurso público, jurando cumprir a Constituição e as leis do país. Legitimam-se perante a sociedade através do conteúdo de suas decisões, que devem sempre ser fundamentadas adequadamente. Possuem o dever da imparcialidade, proferindo julgamentos técnicos.

Quando ideologias, de qualquer matiz, adentram o Poder Judiciário, toda a sociedade sofre, pois os julgamentos tendem a adotar os valores defendidos por aquela corrente, deixando de lado outros pensamentos e possibilidades. Um magistrado não pode possuir uma carga de valores preconcebidos para analisar os fatos da vida alheia, deve antes de tudo ser plural e estar aberto para todo tido de pensamento, sopesando pelo crivo do contraditório para formular sua convicção relativa ao caso concreto.

Causa estranheza, portanto, quando dentro da magistratura ouvem-se vozes de ódio, de exclusão de ideias divergentes, como recentemente ocorreu durante evento promovido pela Escola Judicial do TRT do Maranhão. O tema, extremamente relevante, “Ativismo judicial e autocontenção”, desenvolvido pela colega Ludmila Lins Grillo, juíza do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, gerou manifestações do tipo: “Tantos colegas de renome na Justiça do Trabalho e a Ejud 16 dá espaço para uma juíza terraplanista da Justiça comum, influencer famosa do olavismo. Uma pena, mas faz parte da democracia. Sigamos..”; ou ainda: “Eita, até robô veio pra palestra hj e o gabinete do ódio presente tbm…”. (ver aqui comentários no vídeo da palestra).

O fato assustaria em qualquer meio, mas proveniente da magistratura traz ainda mais preocupação, pois afinal de contas pessoas serão julgadas por aqueles que expressam publicamente aversão a ideias divergentes, o que apequena o Poder Judiciário, já tão combalido por suas mazelas.

Entristece, por exemplo, perceber que a adoção de expressões consideradas politicamente adequadas dividem, de plano, as pessoas e os Magistrados. Quem não inicia discurso, aula ou palestra com o “a todas e todos” automaticamente é tachado como opositor da igualdade de gênero, como se essas quatro palavras pudessem traduzir todo o ser de uma pessoa, toda sua experiência de vida e todos seus valores.

Na área trabalhista, entender que as mudanças promovidas pela reforma trabalhista são constitucionais e que os juízes devem cumprir a lei já provocou rótulos de “juiz do capital”, “defensor da escravidão”, “juiz financiado pelo capital apoiado pela mídia golpista”, levando a consequências discriminatórias, como retirada de convites para palestras entre outras coisas.

Vivemos tempos difíceis, mas a missão de exercer a magistratura jamais pode se enfraquecer pelas adversidades dentro e fora da carreira. O magistrado precisa perseverar, agir com a independência que a Constituição da República lhe garante, imunizando-se contra qualquer tentativa de cooptação ideológica, seja para qual lado for, para cumprir seu papel de julgador isento e garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Afinal de contas, precisamos sempre lembrar que, para além de vozes ideológicas, sempre haverá “juízes em Berlim” (François Andrieux no conto “O Moleiro de Sans-Souci”).

 

Otavio Amaral Calveté juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da ABMT — Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho.

 

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