Opinião

Lei não torna constitucional cobrança de ISS por município incompetente

Edição da LC 175/20 agravou problemas ao indicar manutenção do quadro

20 de novembro de 2020

Por Daniel Corrêa Szelbracikowski e Rhuan Rafael Lopes de Oliveira

Artigo publicado originalmente na ConJur

Em 2016 foi alterada, pela Lei Complementar 157/16 (LC 157/16), a sujeição ativa e o aspecto espacial do Imposto Sobre Serviços (ISS). Na prática, o ISS que era devido ao município onde prestado o serviço passou a ser cobrado pelo município do domicílio do tomador do serviço com relação aos serviços constantes dos subitens nºs 4.22 (planos de medicina de grupo ou individual e convênios), 4.23 (outros planos de saúde), 5.09 (planos de atendimento e assistência médico-veterinária), 15.01 (administração de fundos quaisquer, de consórcio, de cartão de crédito ou débito e congêneres), 10.04 (agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de leasing, franchising e factoring) e 15.09 (arrendamento mercantil — leasing).

Essa mudança foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal na ADI 5.835 e até o momento está suspensa por força da medida cautelar concedida pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, para quem a LC 157/16 padece de indeterminações normativas que prejudicam a aplicação da norma para disciplinar a cobrança do ISS, ensejando insegurança jurídica e conflitos de competência entre mais de um município sobre o mesmo fato gerador. O relator apontou a falta de identificação do “tomador de serviços” como uma dessas indeterminações que inviabilizam a cobrança do imposto.

Na tentativa de superar a decisão do STF, o Congresso Nacional recentemente editou a LC 175/20 buscando: 1) definir quem supostamente seria o tomador do serviço em cada caso (artigo 14); 2) impor aos contribuintes a obrigação de desenvolvimento de um “sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional” para apuração e recolhimento do ISS no município do tomador (artigo 2º); 3) determinar a criação de um Comitê Gestor das Obrigações Acessórias do ISSQN (CGOA) para “regular a aplicação do padrão nacional da obrigação acessória” (artigos 9º e 10) e definir o “leiaute, o acesso e a forma de fornecimento das informações” relativamente ao sistema (artigo 10, § 1º); 4) estabelecer forma de repartição de receitas entre os municípios do prestador e do tomador pelo prazo de dois anos (artigo 15). Em 2021, o produto da arrecadação do ISS devido nesse caso será destinado 33,5% ao município do local do estabelecimento prestador e 66,5% ao município do tomador. Em 2022, a proporção passa para 15% e 85%, respectivamente. Em 2023, o valor pertencerá exclusivamente ao município do domicílio do tomador; por fim, 5) definir que os serviços de agenciamento, corretagem e intermediação de contratos de leasing/franchising/factoring voltariam a ser tributados no local do estabelecimento prestador (artigo 16).

Pela leitura dos novos dispositivos, não há dúvida de que a LC 175/20 parte da premissa de que é constitucional a alteração na tributação do ISS realizada pela LC 157/16.

Diante desse quadro normativo pretendemos abordar a questão sob quatro ângulos distintos: 1) a subsistência da inconstitucionalidade relacionada à impossibilidade de alteração, por lei complementar, da sujeição ativa do ISS decorrente da competência constitucionalmente atribuída aos municípios (artigo 156, III, da CF); 2) a persistência de várias indeterminações normativas que mantêm a ineficácia técnica da sistemática instituída pela LC 157/16; 3) a ineficácia pragmática de ambas as leis complementares até a instituição do comitê gestor e o desenvolvimento dos sistemas; e 4) o surgimento de novas inconstitucionalidades decorrentes da edição da LC 175/20.

Quanto ao primeiro ponto, a LC 175/20 incorre no mesmo vício de inconstitucionalidade da LC 157/16 por violação ao artigo 156, III, da CF/88. Afinal, a nova lei complementar supôs que seria constitucional a alteração da competência tributária realizada pela LC 157/16 do município da prestação do serviço para o do domicílio do tomador/contratante.

Porém, não há falar em tributação no “destino” no caso do ISS quando no município do tomador não há qualquer resquício de prestação de serviço. Tome-se o exemplo de uma sala de cinema localizada em Brasília, ocupada exclusivamente por expectadores domiciliados em Goiânia que estavam a passeio na capital federal. Nesse caso, o fato de o serviço cinematográfico ter sido prestado a tomadores/contratantes domiciliados em Goiânia não muda o fato de a prestação ter ocorrido integralmente no Distrito Federal. Não há ficção jurídica possível que admita atribuir à Goiânia (em que não há qualquer réstia de serviço) a competência para a cobrança do ISS, sendo esse o grave problema de inconstitucionalidade incorrido pela LC 157/16.

Ao mudar a sujeição ativa do município da prestação do serviço/estabelecimento prestador para o do domicílio do tomador, a lei complementar usurpa a competência que a Constituição Federal, em seu artigo 156, III, da CF, outorga ao município em cujo território se desenvolve o serviço. É preciso observar que a lei complementar não tem a capacidade de tornar constitucional a cobrança de ISS por município absolutamente incompetente. A tentativa feita pela LC 175/20 de operacionalizar, no campo das receitas, a apontada inconstitucionalidade, por óbvio encontra vedação na mesma norma constitucional.

Quanto ao segundo ponto, nada obstante a tentativa da LC 175/20 de complementar (e, supostamente, constitucionalizar) a LC 157/16 com a definição dos tomadores, o novo diploma não trata das outras lacunas existentes, como é o caso dos diversos conceitos de domicílio fiscal, das situações de múltiplos domicílios e de operações feitas pela internet, de dispositivos móveis e do exterior, além de ter criado novas indeterminações e/ou antinomias.

De fato, tomando-se como exemplo o serviço de administração de fundos e consórcio em que o consorciado/cotista foi definido como o tomador, o que acontecerá se esse residir no exterior? E se houver mais de um domicílio? Qual prevalece? O domicílio civil? O domicílio eleitoral? O domicílio fiscal? Sendo o domicílio fiscal, o declarado no imposto de renda (esfera federal)? O utilizado para fins de cobrança de IPTU (esfera municipal), de IPVA (esfera estadual), de ITR (esfera federal)? O declarado no momento do envio dos dados cadastrais ao grupo de consórcio? A partir de qual critério? Nenhuma das duas leis complementares respondem a esses questionamentos.

A única definição que se tinha era aquela relativa ao serviço de leasing em que o §3º do artigo 6 da LC 157/16 determinava o domicílio conforme informação prestada pelo tomador no contrato. Ocorre que essa disposição foi revogada pela LC 175/20, de modo que a indeterminação passou a atingir, também, o serviço de leasing.

Além da problemática envolvendo a multiplicidade de domicílios, há grande dificuldade prática para os administradores dos fundos de investimento de distribuição de cotas por conta e ordem. Isso porque nesses casos há a figura de um agente intermediário (o distribuidor) que assume todas as responsabilidades do investimento e faz a interface com o cotista. Não há relação entre o cotista e o administrador.

Relativamente aos planos de saúde, a LC 175/20 definiu que o tomador pessoa física é o “contratante do serviço” (artigo 14, §5º), porém, ao mesmo tempo, fixou como tomador a “pessoa física beneficiária” (artigo 14, §6º). Contudo, nos planos de saúde coletivos o contratante não necessariamente é o beneficiário, o que enseja dúvida acerca do município competente para a cobrança, se o do contratante (a empresa) ou o do beneficiário (pessoa física).

Esses são apenas alguns exemplos das várias indeterminações que persistem mesmo após a edição da LC 175/20, o que impede a cobrança do ISS pela sistemática da LC 157/16, sob pena de violação ao artigo 146, I da CF/88.

Em terceiro lugar, ainda que não se cogitasse das inconstitucionalidades acima, a norma geral da LC 157/16, mesmo complementada pelas disposições da LC 175/20, permanece incorrendo em ineficácia pragmática. É que o sistema de padrão unificado a ser desenvolvido pelos contribuintes de acordo com o leiaute estabelecido pelo comitê gestor é condição de eficácia para o recolhimento do ISS nos moldes preconizados pela LC 157/16.

Observe-se que um dos principais argumentos levantados pelos contribuintes e que levou à concessão da medida cautelar na ADI 5.835 foi o de que a ausência de padronização das obrigações acessórias impossibilitava o cumprimento da LC 157/16, considerando que cada município estava legislando de modo diverso, ensejando conflitos de competência e insegurança jurídica.

Portanto, a LC 157/16 permanece ineficaz até que haja efetiva instituição e funcionamento tanto do comitê gestor quanto do sistema de recolhimento. Prova disso é que ela mesma postergou a apuração e recolhimento do ISS de janeiro, fevereiro e março de 2021 para o 15º dia do mês de abril daquele ano, na expectativa de que, até lá, sejam criados/instituídos/desenvolvidos o comitê gestor e o(s) programa(s) de recolhimento sem os quais não há segurança/padronização que permita ao contribuinte e fisco cumprirem com suas respectivas obrigações.

Em quarto lugar, a constitucionalidade da LC 175/20 é em si discutível por outras razões, além daquelas declinadas em face da LC 157/16 na ADI 5.835.

Há dúvida razoável sobre a constitucionalidade da imposição, pela União, de obrigação ao contribuinte para fins de desenvolvimento de sistema unificado de declaração/pagamento do ISS. É que, ao assim proceder, a LC 175/20 estabelece uma obrigação em concreto (destinada ao contribuinte), ao invés de prever normas gerais (destinada aos legisladores municipais), o que ofende o âmbito material de competência da lei complementar (artigo 146, III, b da CF/88) e a competência tributária dos municípios (artigos 30, III, c/c 156, III, da CF/88). Isso tudo sem mencionar a eventual ofensa à proporcionalidade por ser o contribuinte — e não o Fisco — obrigado a arcar com o ônus de desenvolver sistema para que o Estado exerça seu poder-dever de cobrar tributos.

Além disso, o curioso sistema de repartição de receitas previsto no artigo 15 da LC 175/20 viola o princípio da autonomia municipal [1] ao interferir com a destinação financeira do ISS cuja instituição/arrecadação competiria exclusivamente ao município no âmbito do qual ocorrido o evento serviço (artigo 30, III, c/c 156, III, da CF/88), bem como ofende o artigo 146 da CF/88 ao dispor sobre repartição de receitas que não é matéria afeta ao legislador complementar e sim ao legislador constitucional, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal (v.g. ACO 571 AgR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 03/04/2017 [2] e ADI 4628, rel. min. Luiz Fux, Plenário, DJ 24/11/2014 [3]).

Em conclusão, a edição da LC 175/20 não resolveu os problemas de inconstitucionalidade existentes na LC 157/16, mas, sim, os agravou, tudo a indicar a manutenção do quadro que ensejou a concessão de liminar na ADI 5.835 que esperamos seja confirmada em julgamento de mérito pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.

 

[1] “A Constituição da República criou, em benefício das pessoas municipais, um espaço mínimo de liberdade decisória que não pode ser afetado nem comprometido, em seu concreto exercício, por ingerências normativas de outras entidades estatais que culminem por lesar a integridade da autonomia do Município, compreendida esta também em sua dimensão e em sua projeção financeiras (ADI 1374, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 15-03-2019).

[2] Não se admitindo que, por qualquer norma legal (tanto federal como estadual), se tenha – nem de modo expresso, nem de modo implícito (como seria o caso dos autos, já que as referidas leis não trazem em seu bojo qualquer conteúdo de partilha de receitas) – a modificação da sistemática de repartição das receitas tributárias (ACO 571 AgR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJ 03/04/2017).

[3] “(…) A correção da engenharia constitucional de repartição de competências tributárias somente pode ocorrer legitimamente mediante manifestação do constituinte reformadorpor meio da promulgação de emendas constitucionais, e não pela edição de outras espécies normativas (e.g., Protocolos, Resoluções etc.)” (ADI 4628, rel. min. Luiz Fux, Plenário, DJ 24/11/2014).

 

Daniel Corrêa Szelbracikowski é sócio da Advocacia Dias de Souza, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e especialista em Direito Tributário.

Rhuan Rafael Lopes de Oliveira é advogado na Advocacia Dias de Souza.

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