Opinião

Eleições 2020: A desigualdade das candidaturas negras

Promoção de direitos passa pela distribuição de poder na sociedade

3 de novembro de 2020

Por Carmela Zigoni*

Artigo publicado originalmente no LexLatin

Nos últimos dias, foram publicadas na imprensa reportagens sobre candidatos ricos que receberam auxílio emergencial e estão concorrendo aos cargos públicos do Legislativo e Executivo nas Eleições 2020. De fato, cerca de 1.745 candidatos com patrimônio declarado superior a R$ 500 mil receberam o benefício, configurando desvio de recursos e de finalidade do programa Auxílio Emergencial, aprovado para proteger famílias pobres no contexto da pandemia Covid-19.  Além disso, pode indicar sonegação fiscal.

 

Mas quem são os outros 106.630 candidatos que realmente precisaram acessar o benefício para garantir condições mínimas de disputa no pleito? Ao cruzar os dados de patrimônio declarado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e os disponibilizados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no Portal da Transparência sobre o auxílio emergencial, identificamos que somente 2,55% dos que receberam o benefício têm patrimônio superior a R$ 100 mil. Do total de 550.340 candidaturas[1], 19,69% receberam pelo menos uma parcela do auxílio.  Neste universo, 41,7% são mulheres, 11, 43% declararam patrimônio de até R$ 10 mil (68.886 pessoas) e 2,77% declararam patrimônio entre R$ 10 e R$ 50 mil. Na prática, um patrimônio de até R$ 50 mil pode ser um carro, ou um imóvel modesto.

O TSE não oferece dados de renda, que é o critério oficial para seleção no programa de auxílio emergencial, porém, sabemos pelos estudos no tema que a tendência é que a renda acompanhe o patrimônio – quanto maior a renda maior capacidade de constituir patrimônio; e quanto maior o patrimônio, maior a capacidade de concentração de renda intergeracional, ou seja, por herança.

Nos dados declarados ao TSE sobre patrimônio, tanto entre homens como entre mulheres, a maior concentração de candidaturas se dá nas faixas de R$ 100 a R$ 500 mil: 24,36% e 16,02% respectivamente. Nas faixas de patrimônio superior a R$ 500 mil, porém, a predominância é masculina, mesmo em termos proporcionais: dentre os que declararam patrimônio acima de R$ 500 mil, 82,24% são homens.

Pessoas negras são 57%% dos “sem patrimônio”

Do total de 314.825 registros de candidaturas que declararam patrimônio até R$ 50 mil: 55,1% são pessoas negras (inclusive os que declararam patrimônio igual a zero). As pessoas negras são 57% dos que se declaram sem patrimônio, sendo as mulheres negras 22,4% neste perfil, e os homens negros 34,61%. No mesmo universo de pessoas que se declaram sem patrimônio, a proporção de mulheres brancas é de 17,91% e de homens brancos é de 21,88%. Se olharmos, no entanto, somente para as mulheres negras, 46% se declaram sem patrimônio e apenas 1,8% declararam patrimônio acima de 500 mil; Na outra ponta, se olharmos somente para o universo de homens brancos, 22,9% se declaram sem patrimônio e 11,3% declaram patrimônio acima de 500 mil.

O valor do patrimônio de indígenas se concentra mais nas faixas de até R$ 10 mil (65,7% dos indígenas). Entre as candidatas mulheres indígenas, 58,78% não possuem patrimônio e 10,5% possuem patrimônio de até R$ 10 mil, enquanto 51,8% dos homens indígenas não possuem patrimônio e 12,2% se concentram na faixa patrimonial de R$ 10 a R$ 50 mil.

Condições objetivas de participação das mulheres negras

Os dados sobre patrimônio e recebimento de auxílio emergencial pelas candidaturas refletem as desigualdades raciais e de gênero da sociedade brasileira. Considerando todos os cargos, 29,86% das candidatas negras (pretas e pardas) que estão concorrendo às eleições de 2020 tiveram que acessar o auxílio emergencial durante a pandemia – e é importante lembrar que a imensa maioria das candidaturas de mulheres negras (97,29%) se concentra nas Câmaras Municipais.

Nas Eleições 2018, o aumento de 70% de candidaturas de mulheres que se autodeclararam pretas ficou conhecido como “Efeito Marielle”, uma reação, no âmbito da disputa por espaços institucionais, ao assassinato brutal da vereadora carioca Marielle Franco. Considerando as negras (pretas e pardas) a proporção de mulheres negras se manteve relativamente estável: de 13% em 2014 para 14% em 2018. As candidatas concorreram, mas acabaram representando somente 2,5% do novo Parlamento (foram eleitas 13 negras). Nestas Eleições 2020, aumentou em 1,4% o número de candidatas autodeclaradas negras (pretas + pardas) em relação às últimas eleições municipais, em 2016. Ou seja, são mais de 88 mil mulheres negras candidatas na disputa este ano, refletindo um esforço deste grupo em seguir aumentando sua presença na disputa pelos cargos públicos eletivos – elas querem se ver no poder.

No entanto, elas ainda representam a minoria das candidaturas, embora sejam 25% da população: da média geral de 33% de candidaturas femininas (182.918), as mulheres negras representam apenas 16,1% (88.555).

No quadro mais geral dos indicadores nacionais para este grupo populacional, as mulheres negras são aquelas que, em nossa sociedade: pagam proporcionalmente mais impostos, pois nosso sistema tributário é regressivo; experimentam os piores indicadores de segurança alimentar e nutricional; são as que mais sofrem com o racismo nos serviços públicos de educação e saúde; são também as maiores vítimas de violência doméstica.

Para além dos indicadores negativos que revelam a herança colonial racista e patriarcal que persiste no Brasil e que impacta a vida das mulheres negras, por outro lado, o país e a economia não se movem sem elas. Afinal, as funções do cuidado, debate que se ampliou com a pandemia, são vastamente desempenhadas por mulheres, principalmente as negras, tanto por meio do trabalho doméstico (como profissão ou como trabalho familiar não remunerado), quanto na linha de frente dos serviços de saúde, ou mesmo como aquelas que lideram as ações humanitárias nos territórios periféricos.

Neste sentido, ao refletirmos sobre as eleições, é preciso tomar em conta as condições objetivas de participação na corrida eleitoral para as mulheres negras: a mulher negra candidata, com pouco ou nenhum apoio dos partidos, pouco ou nenhum tempo de TV, e ainda dividindo o trabalho da campanha com o trabalho do cuidado da família, de outras famílias, da ajuda humanitária na pandemia, e muitas vezes sem ter emprego. Muitas se enquadram no perfil do programa de auxílio emergencial, ou seja, uma candidata em situação de vulnerabilidade social e econômica.  Muito diferente das candidaturas de homens, brancos, com patrimônio alto, que tem por tradição ocupar os espaços de poder e pouco ou nenhuma contribuição na economia do cuidado – que segundo a Oxfam (2019), gera mais de 1 trilhão de dólares ao ano no mundo, trabalho não remunerado das mulheres.

A Deputada Federal Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores, deu um importante passo para a superação das desigualdades nas eleições ao solicitar a repartição do Fundo Eleitoral com recorte de raça/cor junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que acatou. O STF decidiu, a partir de moção enviada pelo PSOL e a ONG Educafro, que a regra valeria já para as Eleições 2020, e o recurso de cerca de R$ 2 bilhões do Fundo deverá ser dividido proporcionalmente entre negros e brancos. O cálculo deve obedecer primeiro à proporção de gênero, já determinada pela Emenda Constitucional 97, seguindo a proporção de cotas para candidaturas femininas (30%) e depois por raça/cor. Assim, os partidos deverão distribuir proporcionalmente a verba entre as concorrentes mulheres negras e brancas e entre os homens brancos e negros.

O desafio está lançado para os partidos, uma vez que a decisão do Ministro Ricardo Lewandoviski é de 24 de setembro de 2020, e as candidaturas foram registradas até dia 27 do mesmo mês, ou seja, os partidos já tinham feito a composição de candidaturas, e agora terão que distribuir o recurso com um critério que não estavam prevendo. Isso significa, por exemplo, que finalmente candidaturas de mulheres negras, consideradas, a partir de critérios racistas e sexistas, “pouco competitivas”, poderão ter mais recursos do que candidatos brancos.

O fato é que teremos uma chance histórica de monitorar uma mudança no sistema eleitoral a partir das categorias raciais. Esperemos que a judicialização não seja o caminho dos partidos para barrar este avanço, até mesmo porque os dados apresentados acima demonstram que sem estes mecanismos compulsórios de equidade de gênero e raça, milhares de candidaturas concorrem sem chances de vencer.

Parece que há certo consenso do campo progressista e democrático de que não vivemos em uma democracia racial e sim em um modelo baseado no racismo estrutural. Neste sentido, para promover direitos e justiça social, é preciso desestruturar esta estrutura, o que só será possível com mudanças nos sistemas, a exemplo do sistema eleitoral, mas também o sistema político entendido de forma mais ampla: a distribuição de poder na sociedade.

*Carmela Zigoni é doutora em Antropologia Social e assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), parceiro da Campanha Quero Me Ver No Poder, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, com apoio do Fundo Pulsante

 

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