Opinião

Reflexos da crise da Covid-19 para a construção civil

Empresas devem manter o foco no cronograma

7 de agosto de 2020

Por Felipe Lourenço Lima*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Na contramão das perspectivas otimistas do final de 2019, a pandemia da Covid-19 atingiu fortemente a indústria da construção civil no último semestre, causando uma série de adversidades e desafios, em especial, pela profusão de decretos, ordens judiciais e acordos coletivos de entidades sindicais.

Ao contrário de diversos setores impactados negativamente por medidas restritivas, em geral a construção civil foi autorizada a seguir. Mas, em frequência quase semanal, surgia algum tipo de regulamento que, quando não vedava expressamente a atividade, restringia a atuação de subcontratados e fornecedores complementares.

Essas circunstâncias deram origem a conflitos entre entidades que tangenciam os contratos de construção e a disputas políticas que inflamaram ainda mais a imprevisibilidade do mercado. Assim, vieram à tona vários debates sobre comitês de crise, pleitos, eventos de caso fortuito e força maior que, majoritariamente, sucederam na recomendação de que as partes devem dialogar e renegociar seus contratos.

Embora esses aspectos sejam corretamente levantados, entende-se que não são suficientes, já que pouco se fala no contrato como instrumento preventivo, capaz de absorver dificuldades externas, sem tratamento extraordinário ao seu curso normal.

A fluidez de um contrato de construção deve partir da premissa de que alterações durante a execução não são casos isolados, mas a regra padrão, e que, apesar de planejamentos bem estruturados serem fundamentais para a realização de empreendimentos, não inibem alterações durante seu curso, mas as contemplam.

Entretanto, a realidade nos mostra muitas falhas de comunicação e interesses desalinhados que, ante um quadro de frequentes alterações normativas como o atual, agravam-se fortemente e deixam as partes à mercê de relações beligerantes.

Por outro lado, é interessante notar que a construção civil tem tido diversos avanços técnicos, como a inovação na industrialização de materiais e digitalização de canteiros [1]. Porém, a despeito desse progresso que, certamente, pode colaborar com a prevenção de conflitos, vale destacar as experiências contratuais de outros países, inclusive vizinhos, que têm evoluído bastante em discussões sobre o conceito de no blame e sistemas de gestão open book, ambos utilizados em contratos de aliança.

O conceito de no blame é a ideia de não trazer consequências negativas para comportamentos não intencionais. Presume-se que todas as decisões tomadas de boa-fé, sem erros grosseiros, não devem ser puníveis, pois a melhor opção já teria sido feita. Já os sistemas de open book visam à total transparência e comunicação entre as partes, inclusive com abertura para projeções de orçamentos, sempre conforme a realidade.

Embora o momento seja de retração econômica, invariavelmente o mercado brasileiro se abrirá e deve aderir às melhores práticas internacionais para atrair investimentos. Contudo, na prática, as partes por vezes têm receio de cumprir o próprio contrato com o intuito de não prejudicar a relação comercial estabelecida com o outro lado, prejudicando o cumprimento de algumas regras, tratadas de forma secundária.

Isso é compreensível. Se de um lado as construtoras querem atender aos seus clientes da melhor forma, de outro, os clientes querem o empreendimento estritamente conforme seu objetivo particular. Porém, não seguir determinados dispositivos a rigor do contrato pode causar problemas maiores, já que a insatisfação do contratante gera incentivos para a adoção de comportamentos oportunistas, valendo-se de minúcias de um instrumento que não consegue absorver problemas.

Por esse motivo, ainda que haja resistência em aderir às melhores práticas de maneira efetiva, é recomendável pinçar mecanismos dos avanços aqui demonstrados para aplicação nos contratos, e isso não significa apenas ter um leque de opções de solução de conflitos, mas instrumentos que ajudem na prevenção.

Uma boa ferramenta, que tem ficado em segundo plano, é o Relatório Diário de Obra (RDO). O melhor aproveitamento desse instrumento exige uma rotina fixa de sua elaboração, para que esteja sempre de acordo com as ocorrências, pois, além de registrá-las, valoriza as horas trabalhadas. Inclusive, o contrato pode determinar que o RDO seja meio de comunicação entre as partes, o que dá velocidade e transparência às informações, como um rudimento do open book.

É essencial que as equipes sejam treinadas com o hábito de registrar as atividades. Se desde o briefing do projeto, passando por auditorias, as partes lidam com larga documentação, a prática também deve ser continuada em campo. Os registros em uma obra são provas da relação de causa e efeito de qualquer mudança, e isso precisa estar claro para que a produção documental adquira maior relevância.

Além disso, as solicitações de mudanças devem seguir, por exemplo, a mesma lógica de implementação de materiais na obra, em que se especifica detalhadamente a necessidade e os responsáveis pelos suprimentos utilizam a informação exata para a aquisição, isto é, devem ter origem e evidências. O ideal é que o contrato tenha um procedimento de consolidação das solicitações para que elas sejam discutidas em reuniões periódicas, devidamente documentadas, em vez de notificações formais.

Os contratos também devem ser flexíveis a ponto de autorizar a documentação de cumprimento das normas por qualquer meio, em especial aqueles decorrentes da experiência sensorial do canteiro e do seu entorno (fotos, áudios e vídeos). Aliás, outro aspecto significativo que precisa ser trabalhado é a flexibilização dos modos de notificação. O e-mail deve ser a principal forma, pois é a maneira mais eficaz de manter registros, sem prejuízo ao RDO e mesmo às mensagens em aplicativos. Ainda, é fundamental lavrar atas de reunião ou, minimamente, enviar os resumos das discussões por e-mail.

O contrato deve facilitar abordagens mais comerciais e para o setor da construção civil, em que as partes tendem a preferir a informalidade e soluções imediatas. Se os procedimentos são simples, o cumprimento tende a não ser um problema, e isso ajuda na formulação de cenários e alternativas para mitigação de riscos, sustenta eventuais mudanças de rumo e ajuda a validar as decisões sem prejudicar a essência do projeto.

Por fim, no cenário atual, construtoras e seus clientes passam por dificuldades que podem ensejar comportamentos oportunistas e os mecanismos aqui expostos servem para deixar os contratos mais pacíficos e menos custosos. De toda forma, não há estimativa do que pode acontecer no médio ou curto prazo, seja quanto às restrições governamentais ou às mudanças de escopo para adaptação aos reflexos da pandemia e, caso o contrato não esteja apto a assimilar problemas sem gerar conflitos, o ideal é manter o foco no cronograma. Quanto antes for feita a entrega da obra, melhor.

[1] A utilização do sistema BIM, sigla para Building Information Modeling, por exemplo, possibilita o gerenciamento à distância e o acesso aos projetos construtivos em tempo real através de QR codes postos no canteiro, de modo que todos os envolvidos tenham acesso aos dados e enxerguem o projeto como algo vivo, capaz de atender demandas e modificações de maneira célere. De acordo com a US National Building Information Model Standard Project Committee, o BIM funciona como a representação digital das características físicas e funcionais de uma instalação. Trata-se de um recurso de conhecimento compartilhado para obter informações sobre um empreendimento, formando base confiável para decisões durante seu ciclo de vida; definido como o período entre a concepção inicial e a demolição.

Felipe Lourenço Lima é advogado da área Societária e de Contratos do WZ Advogados.

Notícias Relacionadas

Notícias

Lei que permite conciliação virtual é avanço na Justiça, dizem especialistas

Para advogados, tecnologia deve impactar positivamente na resolução de conflitos

Opinião

Brasil terá de arcar com pedalada dos precatórios

Pessoas humildes merecem e devem ter todo auxílio, mas há outras alternativas, sem furar o teto