Por Cecilia Mello e Celso Cintra Mori*
Artigo publicado originalmente na ConJur
Em 54 páginas do detalhado e minucioso voto proferido pelo ministro Edson Fachin, na condição de relator da ADPF 572/DF, a liberdade de expressão foi referida, analisada, protegida e exaltada por 34 vezes. Indiscutivelmente assegurada ao longo de todo o voto como um direito fundamental expressamente reconhecido no inciso IV, do artigo 5º da Constituição, a liberdade de expressão teve as suas limitações restauradas frente a impossibilidade de inércia do Supremo Tribunal Federal diante dos fatos sob investigação. A divulgação de fake news, falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas e ameaças, propagadas em massa pelas redes sociais, com o suporte de suposto esquema de financiamento, abalam e colocam em risco a integridade institucional da Suprema Corte e de seus membros, objetivando atingir e expor “a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito”.
A liberdade de expressão, como um direito de expressar os conteúdos da própria personalidade, encontrou no voto do ministro Fachin a justa e necessária exaltação, com a ponderação dos seus limites, na medida que se viabilizou a investigação, com estrita observância do devido processo legal. Enalteceu-se a liberdade de expressão como um valor fundamental protegido pela Constituição, com a necessária distinção de seu exercício como o uso de um direito, e nunca com o abuso desse direito. A pretexto de se expressar livremente um pensamento, ou uma determinada ideia, os fatos investigados não poderiam invadir e violar direitos, com lesão notória não apenas à dignidade e integridade de ministros, mas com a possibilidade de lesão a fundamentos do próprio Estado democrático de Direito. Em síntese de um voto profundo, abrangente e didático, pode-se dizer que garantiu a liberdade de expressão como relevantíssimo valor constitucional, mas assegurou a dignidade da pessoa humana e, principalmente, destacou a necessidade de o Estado de Direito ter legítima defesa contra as tentativas de eliminá-lo.
Já tivemos oportunidade de afirmar que a liberdade não é absoluta. Não é absoluta exatamente porque não se sobrepõe à dignidade da pessoa humana, nem mesmo a direitos patrimoniais desta, tampouco à própria democracia. Em garantia de outras liberdades e de outros valores que a Constituição também prestigia, a lei proíbe a expressão do pensamento quando esta significar: I) ofensa à dignidade e à honra de outrem (artigo 138 e seguintes do Código Penal); II) incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal); III) discriminação racial, religiosa e de nacionalidade; e IV) divulgação do nazismo (artigo 20 da Lei 7.716/89 e seu §1º). E como acertadamente destacado pelo ministro Fachin, lastreado no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigo 19), internalizado pelo Decreto nº592/92, bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13), o exercício desse direito implica em responsabilidades especiais, podendo estar sujeito a restrições previstas em lei com o objetivo de assegurar o respeito aos direitos e à reputação de terceiros, bem como proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.
Acima de tudo isso, não existe liberdade de expressão para organizar ataques que, com alguma efetividade, ponham em risco o Estado de Direito. Não se pode censurar previamente ninguém que queira se expressar. Mas o exercício da liberdade de expressão traz responsabilidades, cabendo ao Judiciário distinguir entre o uso e o abuso.
O que se constata no voto, e se deve prestigiar, é o reconhecimento de um regime de equilíbrio no exercício da liberdade de expressão, em suas diferentes formas de manifestação, que pressupõe adequação e ponderação frente a outros direitos, também caros e fundamentais, que devem ser igualmente resguardados.
A liberdade de expressão manifestada através da rede mundial de informática é fonte de incompreensões, paradoxos e perplexidades. O fenômeno mundial de comunicação instantânea provocado pela internet, a que bilhões de pessoas têm acesso com a garantia do anonimato, leva muitos a pensar, equivocadamente, que a internet pertence a uma outra ordem jurídica, em que a liberdade de expressão é sempre absoluta e pode ser utilizada para atacar impunemente a honra de outros. Há, muitas vezes, a ideia de impunidade e de tolerância com ilegalidades e abusos praticados pela internet, a pretexto de exercício da liberdade de expressão, ante a dificuldade de investigação e a fragilidade dos meios de coerção.
Entretanto, embora a tecnologia da internet favoreça o anonimato, que a Constituição proíbe (CF, artigo 5º, IV), não há na internet nenhum território anárquico ou diferenciado, em que não se aplicassem as mesmas leis a que estão sujeitas todas as outras formas de comunicação. Tudo que se disse, ou que se diga, a respeito da necessidade de ponderação e equilíbrio entre o direito à liberdade de expressão e os demais direitos é válido para a comunicação que se faça pela via da internet. A forma digital de garantir o uso e de coibir o abuso não cria diferenciação de regência ou interpretação jurídica. Apenas torna mais difícil a atuação concreta da lei e da jurisdição.
Acentuando os aspectos da responsabilidade penal, o voto pondera sobre a necessidade da gravidade e verossimilhança da ameaça, sendo tal exigência ainda mais rigorosa quando a vítima exerce função pública, por ser a exposição a críticas inerente à própria atividade. Mas as liberdades públicas, tanto quanto outras, não são incondicionadas e devem ser exercidas dentro dos limites constitucionais (CF, artigo 5º, §2º). Em qualquer hipótese, não há na liberdade de expressão espaço para se abrigar o ilícito penal.
Em suma, o poder investigativo do Supremo Tribunal Federal decorre, como assentado no voto, do dever institucional de obediência à própria Constituição Federal, que não pode ser interpretada de maneira a outorgar a alguns um suposto direito absoluto que exclua direitos e garantias fundamentais de outros. Esses direitos são inerentes a qualquer indivíduo e constituem a organização democrática da República.
Esse mesmo poder investigativo, conforme ressaltado no voto, deve caminhar em estrita conformidade com devido processo legal, limitando-se o objeto do inquérito aos fatos que evidenciem risco efetivo à independência do Poder Judiciário e que atentem contra os Poderes instituídos, contra o Estado de Direito e contra a democracia.
Nessa ponderação de direitos, o voto ressalta a necessidade de observância da liberdade de expressão e de imprensa, excluindo-se dos autos matérias jornalísticas e manifestações pessoais, “desde que não integrem esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais”.
Por imprensa, em atualização do conceito motivada pela progressão tecnológica, devem se entender todos os meios de comunicação coletiva de informações e opiniões. Entre esses meios se incluem a comunicação falada, escrita e de imagens, impressa ou digital (artigo 220 da Constituição). A boa imprensa é a que deixa claro aos seus destinatários o que é informação e o que é opinião. E que se assegura em transmitir a informação verdadeira. A má imprensa é a que distorce a informação para amoldá-la à opinião de quem a transmite. Mas o legislador e o sistema jurisdicional não cuidam, e não devem cuidar, dessa distinção entre boa ou má imprensa. A liberdade de imprensa existe e é assegurada constitucionalmente, independentemente de sua qualidade. O denso voto, atento aos mandamentos constitucionais, também não faz qualquer distinção.
Cecilia Mello é advogada, sócia do escritório Cecilia Mello Advogados e desembargadora aposentada do TRF-3.
Celso Cintra Mori é advogado, sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Foto: Rosinei Coutinho / SCO / STF