Opinião

Bolsonaro x Moro

Perícia inadequada em gravações podem comprometer investigações

Por André Damiani, Diego Henrique e Raphael Martello*

Artigo publicado originalmente no LexLatin

A controvérsia que mobiliza o país merece uma análise técnico‑pericial criteriosa tanto das mensagens contidas no celular de Sérgio Moro, quanto das gravações audiovisuais da reunião ministerial de 22 de abril. Afinal, a eventual comprovação dos crimes atribuídos ao presidente da República impacta diretamente nos rumos da nação.

Ocorre que o trabalho pericial até aqui desempenhado não corresponde ao protagonismo esperado na elucidação das graves imputações de ambos os lados, na medida em que há flagrante atropelo da lei. De saída, nunca existiu o necessário controle da cadeia de custódia da prova, assim definida pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) como o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte (art. 158-A). Preservar a integridade do objeto de prova é fundamental para garantir a idoneidade da perícia.

Nesse sentido, tanto o equipamento que contiver a gravação audiovisual relativa à reunião ministerial havida em abril, quanto o celular de Moro exigem os mesmos cuidados na coleta, preservação da integridade dos dados, extração de informações patentes e recuperação de dados eventualmente “apagados”, por intermédio de ferramentas distintas para cada qual dos exames.

Há informação de que o arquivo audiovisual foi fornecido por meio de um HD externo, o que certamente indica que não se trata do arquivo original. Se isso for verdade, trata-se de grave equívoco. O correto, necessário e imprescindível é que esse arquivo fosse obtido mediante extração forense (do sistema de gravação que o gerou, ou dos arquivos originais), gerando-se a cópia e criando-se o hashcode, assegurando a integralidade e a integridade do arquivo, fornecendo-se cópia do auto de coleta, no qual deve ser consignado o respectivo código gerado (hash). Isso dificultaria, inclusive, que ocorresse edição do arquivo, pois, se ocorreu, e se foi bem feita, será muito difícil constatar.

Nesse particular, consta da investigação que o Laudo nº 1.242/2020 focou na transcrição dos áudios sem que tenha sido concluída a averiguação preliminar sobre a eventual edição do material; restou consignado que tal análise será objeto de laudo diverso.

Cabe o alerta, entretanto, de que o segundo exame não deve ser relegado; sabidamente, o arquivo de vídeo coletado não possui “time stamp” (marcador de data e horário). Essa peculiaridade, sob a ótica pericial, exige que seja percorrida e descartada a hipótese de eventual supressão de trecho(s). Aliás, bastaria que tal supressão tivesse sido conduzida por alguém tecnicamente capacitado, fazendo-o de maneira a restabelecer os atributos originais do arquivo, para mascarar a eventual eliminação.

No caso do celular de Moro, o procedimento de coleta também se mostrou inadequado, na medida em que se permitiu ao próprio investigado que selecionasse os conteúdos que poderiam servir à investigação, a despeito de outras conversas que pudessem interessar à Justiça, inclusive aquelas eventualmente apagadas. Por sorte, mesmo arquivos apagados podem ser recuperados, uma vez que meros fragmentos podem ser reconstruídos ou “esculpidos” (carving files). Vale destacar ainda que, tecnicamente, recuperar arquivo apagado é muito mais fácil do que se comprovar que houve edição, pois há ferramentas muito eficazes para encobrir edições e modificações de certos atributos de arquivos.

Não cabe ao investigado decidir o que interessa à investigação

Nesse contexto, marcante contradição no comportamento do ex‑ministro merece destaque. Em sua oitiva, Moro disponibilizou o aparelho celular tão-somente “para extração das mensagens trocadas via WhatsApp, com Bolsonaro e Carla Zambelli”. E por que não as demais mensagens? Será mesmo que a controvérsia se resume a poucos diálogos? Ora, desde quando o investigado decide aquilo que é do interesse da investigação? Na verdade, nunca decidiu. Bem por isso, quando chamado a se manifestar sobre a conveniência de entrega parcial, pelo Executivo, dos vídeos da reunião, Moro pontuou que escolher trechos “que são ou não importantes para investigação é tarefa que não pode ficar a cargo exclusivo do investigado”, porquanto isso não garantiria a integridade do elemento de prova fornecido. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço…

A cereja do bolo no tocante à inconsistência pericial reside no fato de que o Pacote Anticrime, de iniciativa do então ministro da Justiça Sérgio Moro, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, disciplinou rigorosamente a questão relativa à cadeia de custódia da prova, preconizando tudo aquilo que é obrigatório e não está sendo feito, ironicamente, no caso concreto.

Ocorre que o STF sempre destacou a relevância pericial para o fiel esclarecimento dos fatos. Isso porque o decano e relator do inquérito em andamento, ministro Celso de Mello, ao requisitar as gravações, consignou expressamente que “as autoridades destinatárias de tais ofícios deverão preservar a integridade do conteúdo de referida gravação ambiental (com sinais de áudio e vídeo), em ordem a impedir que os elementos nela contidos possam ser alterados, modificados ou, até mesmo, suprimidos, eis que mencionada gravação constitui material probatório destinado a instruir, a pedido do Senhor Procurador-Geral da República, procedimento de natureza criminal”.

Nessa toada, obrigatório ter em mente que ao menor sinal de adulteração dos arquivos periciados será imprescindível e urgente nova diligência pericial, agora com observância estrita da cadeia de custódia da prova, que tenha por objeto o equipamento utilizado na gravação da reunião ministerial ou o celular do ex-ministro, fazendo-se a respectiva extração forense do arquivo desejado.

Somente dessa forma será preservada a integralidade (todo o arquivo) e a integridade (na forma original) dos arquivos, de maneira não só a garantir que não tenham sido anteriormente modificados ao exame, como também desmascarando eventuais adulterações. Tudo em prol da necessária e cabal apuração dos fatos.

*André Damiani, sócio fundador, Diego Henrique, advogado associado do Damiani Sociedade de Advogados. Raphael Martello é sócio fundador do Dynamics Perícias.

 

Foto: Carolina Antunes / Presidência da República

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