Opinião

A pandemia e a responsabilidade trabalhista

Fato do príncipe tem alcance mais limitado que o propagado

2 de junho de 2020

Por Rodrigo Dias da Fonseca*

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

A queda vertiginosa da atividade econômica por força da pandemia do novo coronavírus acendeu intensa controvérsia sobre o cabimento da figura jurídica do factum principis (fato do príncipe) por ocasião da extinção inevitável de contratos de trabalho. Infelizmente, o debate tem sido permeado por uma série de desinformações e inexatidões técnicas.

O fato do príncipe se revela quando a atividade da empresa é paralisada temporária ou definitivamente, em decorrência de ato normativo ou legislativo, caso em que parte das obrigações trabalhistas rescisórias transfere-se para o ente federativo que lhe haja emitido (CLT, art. 486)

Dentro dessas balizas legais, a nosso juízo, como regra não se configura a hipótese de fato do príncipe no contexto atual, senão vejamos.

O ato estatal apto a imputar ao ente público a responsabilidade de pagamento de verba trabalhista deve ser imprevisível, por definição. E, tendo em vista o caráter pandêmico da covid-19 e o estado de calamidade público oficial vigente (Decreto Legislativo nº 6, de 2020), não cabia alternativa aos chefes dos Poderes Executivos, senão adotar as medidas sanitárias de interesse coletivo, que se classificam, então, como ato vinculado, sem qualquer traço de discricionariedade.

Ademais, o ato de império de que resulte a obrigação de indenizar é aquele que ocasiona um dano anormal e específico a pessoas determinadas, violando o princípio da isonomia, segundo o qual os ônus sociais da atividade administrativa devem ser igualmente distribuídos entre todos.

No caso das medidas governamentais tendentes a conter o alastramento do ritmo de contágio do novo coronavírus, há uma ampla zona de indeterminação das pessoas físicas e jurídicas atingidas, praticamente todas afetadas em maior ou menor grau.

É lição primária de que “Direito é bom senso”. Causaria estranheza e estupefação que o poder público fosse obrigado a indenizar quando toma medidas de proteção à saúde de toda a população. Aliás, consoante a jurisprudência pátria, a ação do poder público que visa resguardar interesses maiores da população não configura o factum principis.

De todo modo, ainda que em tese configurada a sua ocorrência, o “fato do príncipe” encerra hipótese de cabimento bem mais restrita do que se tem propagado.

A despeito da crise econômica momentânea, diversas empresas seguirão funcionando normalmente. Quanto a estas, não cabe sequer cogitar da figura do “fato do príncipe”. Já em relação àquelas que encerrarem suas atividades, ainda que temporariamente, em razão do cenário econômico devastador, pode-se cogitar excepcionalmente da regra do art. 486 da CLT, com uma ressalva importante: o motivo da paralisação da atividade deve indubitavelmente decorrer de ato de autoridade pública, não sendo este o caso de empresas que já atravessavam adversidade e crise econômica intensas antes da pandemia e das ações governamentais.

Nem sempre será simples a avaliação casuística dessas circunstâncias. Porém, é evidente que a lei deve ser interpretada de acordo com os fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum, não se admitindo que ninguém se valha desse momento conturbado para auferir vantagens por sua aplicação desvirtuada.

Retomando o texto normativo, configurado o fato do príncipe, “prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. Assim, caso o “fato do príncipe” venha a ser reconhecido em relação a certa empresa, esta apenas transferirá ao ente federativo responsável o pagamento da indenização incidente sobre os depósitos do FGTS, ordinariamente de 40%.

Entretanto, o “fato do príncipe” é uma espécie do gênero força maior que, em sua acepção trabalhista, abrange todo acontecimento inevitável e contrário à vontade do empregador e para o qual não concorreu, direta ou indiretamente, e que lhe afete substancialmente a situação econômica e financeira. Nesse caso, diz a lei, as verbas rescisórias – inclusive no caso do factum principis – são devidas pela metade (CLT, art. 502, II).

Em suma, o reconhecimento do “fato do príncipe” transfere ao ente público a responsabilidade pelo pagamento, exclusivamente, da indenização de 20% sobre os depósitos do FGTS. As demais verbas trabalhistas e rescisórias seguem a encargo do empregador que teve sua atividade paralisada.

 

Rodrigo Dias da Fonseca é juiz do trabalho no TRT-18, Goiânia e diretor da Escola da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT)

Notícias Relacionadas

Opinião

Lei sobre auxílio-alimentação combate uso inadequado do benefício

Obrigatoriedade de atendimento das regras não se aplica aos contratos de fornecimento vigentes

Opinião

O STJ e a limitação da base de cálculo das contribuições parafiscais

Ações judiciais sobre o tema se fortaleceram no início do ano passado