Opinião

A chaga dos insensatos

Sanha punitivista resulta em pressão indevida sobre administradores públicos

1 de junho de 2020

Por Daniel Gerber*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O homem é o homem e suas circunstâncias, como já sabiamente dizia o filósofo José Ortega y Gasset (1883-1955). Por mais que a frase esteja surrada por ter sido empregada muitas vezes ao longo da história recente, serve ainda de premissa para a avaliação de situações de crise, nas quais o senso comum tende mais a confundir do que explicar.

Como reza uma frase atribuída ao escritor francês Anatole France, o senso comum diz-nos que a terra é imóvel e que o sol gira à sua volta. O senso comum é a chaga dos insensatos, ainda mais em tempos de uma crise sem precedentes recentes, como é a da pandemia causada pelo coronavírus.

A crítica do senso comum e a incapacidade de alguns atores entenderem seus papéis em momentos de tormenta são essenciais para compreender os exageros que eventualmente se percebe em certos setores do Ministério Público Estadual.

Todos os que lemos jornais sabemos da dificuldade brasileira em obter itens básicos de enfrentamento à covid-19. Respiradores hospitalares, outrora de uso restrito, passaram a ser vendidos a preço de ouro em decorrência da escalada da doença. A lei da oferta e demanda, neste contexto, tem sido usada com crueldade por países como a China, que se comporta como um agente capitalista selvagem tutelado pelo comunismo autoritário.

Para piorar, neste contexto de guerra, aparelhos e máscaras ou são apreendidos, não entregues, extraviados e, pasmem, até mesmo pirateados ao longo do caminho da importação. Esses são os justos motivos que permitem às autoridades públicas adotarem interpretações mais largas da legislação que rege as compras estatais na corrida pelos aparelhos e suprimentos.

Vamos ignorar, ainda, que as empresas chinesas só embarcam equipamentos mediante pagamento antecipado, sendo esse o motivo das exceções realizadas por governos estaduais – que têm feito pagamentos antecipados pelos produtos, quando a letra fria da lei obriga que os pagamentos somente poderiam ser quitados após a entrega das mercadorias?

É evidente que, em muitos casos, a pandemia tem sido usada por gestores corruptos. Mas é preciso separar o joio do trigo, mandamento que os promotores e procuradores da República, em alguns casos, estão se esquecendo.

No afã do parquet em policiar a tudo e a todos, inauguram-se inquéritos e processos judiciais contra empresários e gestores. Se tal atuação marca pontos e cria efemérides jornalísticas, cria, noutra ponta, o terror. O efeito disso tudo é a pressão indevida que certos administradores públicos sentem na hora de tomar decisões que, dada a gravidade do quadro, são exigidas com velocidade excepcional.

Uma tragédia separa os homens dos meninos, e a covid-19 legará para a história gestores e empresários que são verdadeiros heróis ao ousarem enfrentar injustas acusações, com sacrifício pessoal próprio, em prol de todos nós.

*Daniel Gerber é advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, sócio-fundador dos escritórios Daniel Gerber Advogados Associados (Brasília-DF, Porto Alegre -RS) e Gerber & Guimarães Advogados Associados (Palmas -TO)

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