Por Wanessa Magnusson de Sousa e Pedro Henrique da Silva Montanher*
Artigo publicado originalmente na ConJur
O PL 2002/2020, em trâmite no Senado Federal, propõe alteração ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), a fim de impor aos fornecedores nacionais a obrigação de oferecer garantia de produtos adquiridos pelo consumidor no exterior.
Segundo o texto, o fornecedor doméstico é objetivamente responsável pela garantia do produto importado, devendo repará-lo, se viciado. Se o reparo no Brasil for impossível, deverá providenciar e custear a remessa e o reparo do produto no exterior. Se inviável o reparo, deverá providenciar a troca por produto análogo ou superior ao defeituoso.
À primeira vista, numa economia globalizada, a alteração proposta parece acertada. Mas a imposição aos fornecedores nacionais da obrigação de garantir produtos trazidos do exterior tem implicações importantes, que pedem um olhar mais cauteloso.
O PL não faz abordagem específica de hipóteses que mereceriam tratamento excepcional. Por exemplo: a obrigação de garantia recai também sobre produtos que não são comercializados pelo fornecedor nacional? O consumidor vai ao exterior e adquire um aparelho celular cujo modelo não é fabricado/comercializado no Brasil. O fornecedor brasileiro estará obrigado a garantir o produto, apesar de não comercializá-lo? Como o texto atual do PL não faz ressalvas, em princípio, a resposta é sim.
Parece claro, contudo, que a responsabilização do fornecedor brasileiro deve se restringir aos produtos que integrem seu portfólio, vez que é a estes que se dirigem as obrigações previstas no CDC.
O artigo 32 do CDC estabelece que tanto fabricante quanto importador são responsáveis por garantir peças e componentes a subsidiar reparos e reposição pelo tempo que fabricarem ou importarem estes produtos. É lógico concluir que quem deve manter o fornecimento de peças e componentes de determinado produto é quem vende ou importa este produto. Sequer haveria sentido obrigar um fornecedor a ter em estoque peças e componentes de produto que não comercializa.
Assim, o fornecedor nacional que nunca fabricou, nem importou/comercializou, determinado produto não pode ser obrigado a manter em seus estoques peças e componentes desse mesmo produto. Consequentemente, não pode ser obrigado a reparar tal produto, que não faz parte de seu portfólio de vendas.
Da mesma forma, não pode ser obrigado a arcar com os custos para reparo do produto no exterior ou com sua substituição. Obrigar o fornecedor nacional a garantir e responder pelo reparo ou substituição de produtos que não compõem seu portfólio, adquiridos de fornecedor estrangeiro, é impor uma responsabilidade ilimitada e desproporcional, que extrapola os limites estabelecidos pelo próprio CDC.
O artigo 12 do CDC é claro ao estabelecer os players responsáveis pelo fato do produto: fabricante, produtor, construtor e importador. No exemplo citado (aquisição no exterior de um modelo de telefone celular não comercializado no Brasil), o fornecedor nacional não se enquadra em nenhuma categoria legal de agentes passíveis de responsabilização pelo fato do produto. Ele não é produtor, fabricante ou importador. Assim, o alargamento da responsabilidade trazido no PL contraria a própria lógica do código.
Há, inclusive, entendimento sumulado pela Turma de Uniformização de Julgados do JEC do Distrito Federal segundo o qual “os produtos de consumo adquiridos em país estrangeiro não gozam da mesma proteção jurídica outorgada pelas normas brasileiras de proteção e defesa do consumidor, destinadas aos negócios celebrados em território nacional”.
Outro ponto não considerado pelo PL são as implicações regulatórias da responsabilização do fornecedor nacional pela garantia de produtos adquiridos no exterior e não comercializados no Brasil.
A Resolução Anatel 715/2019, por exemplo, estabelece que todo produto de telecomunicação, para sua comercialização no Brasil, deverá estar em conformidade com as normas técnicas expedidas pela agência. Trata-se de regra que, assim como o CDC, vincula a atividade de fabricantes e importadores.
Não se pode exigir que um fornecedor nacional seja responsável por garantir/reparar um produto estrangeiro cuja fabricação se deu em desrespeito de normas técnicas que regulam suas atividades. Para prover tal garantia/reparo, o fornecedor doméstico poderá ser obrigado a oferecer assistência a produto fabricado em desacordo com as normas técnicas regulatórias e a recolocar no mercado, após o reparo, este produto irregular, o que não é nem remotamente razoável.
Também sob o viés comercial/econômico, o PL não parece acertar. O texto estimula a compra de bens fora do Brasil já que, de todo modo, tais bens serão garantidos pelos fornecedores nacionais (ainda que estes não os comercializem), que pagam tributos e geram empregos no Brasil. Num ambiente de consumo globalizado, o PL cria um cenário concorrencial desfavorável para o fornecedor nacional.
Esses são alguns aspectos aparentemente ignorados na edição do PL 2002/2020. O tema merece debate extenso, pois a alteração da norma na forma proposta traz reflexos relevantes para o mercado.
A conversão do atual texto em lei poderá resultar em incoerência dentro do próprio CDC, em prejuízos para os fornecedores brasileiros e, em última análise, para os interesses comerciais e econômicos nacionais.
Wanessa Magnusson de Sousa é advogada especialista em relações de consumo e sócia do escritório Nascimento e Mourão Advogados.
Pedro Henrique da Silva Montanher é sócio da área de Direito Empresarial do escritório Nascimento e Mourão Advogados.
Marcos Oliveira/Agência Senado