Por Tadeu Henrique Machado Silva*
Artigo publicado originalmente pela ConJur
Com o advento da pandemia da Covid-19 e do seu severo impacto na dinâmica social, desde as atividades econômicas até a relação entre empregador e empregado, obviamente o Poder Judiciário não passou ileso a esse fato sem precedente no século XXI.
Assim, desde as primeiras notícias sobre o agravamento da situação sanitária no mundo e no Brasil, notadamente com a decretação do estado de calamidade pública no país e a edição de medidas provisórias, no âmbito da Justiça do Trabalho, tanto o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) como a Associação Brasileira dos Magistrados do Trabalho (ABMT) vêm discutindo o assunto. A ideia é debater como se preparar para manter em curso a atividade jurisdicional e garanti-la após o fim da pandemia, embora sequer se saiba quando isso ocorrerá.
Em razão disso, atos e regulamentos vêm sendo publicados por praticamente todos os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) tratando sobre o procedimento para realização de audiências telepresenciais, estabelecendo meios, prazos e obrigações às partes, com disposições similares. Contudo, ainda sem uniformidade.
Apesar do CSJT ter publicado o Ato Conjunto CSJT-GP-GVP-CGJT 06, de 5 de maio de 2020 (Ato Conjunto nº 06/2020), sob o pretexto de uniformizar no âmbito da Justiça do Trabalho o funcionamento dos serviços judiciários não presenciais, nesse intento, determinando que as audiências e as sessões telepresenciais sejam conduzidas preferencialmente mediante Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais, no mesmo ato conjunto autorizou que os Tribunais Regionais [1] possam usar outras ferramentas para tanto. O cenário causa insegurança jurídica.
A razão é a diversidade dos meios adotados pelos Tribunais Regionais, que passa pela utilização de programas e aplicativos como o Webex, o Google Meet até o Zoom. Logo, exige-se das partes a plena compatibilidade e o funcionamento desses com seus aparelhos telemáticos (smartphone ou notebook).
Diferentemente de uma audiência realizada de forma presencial, o meio remoto, por demandar o uso da internet, por sua vez, depende de fatores que estão fora do controle das partes e de seus advogados, sendo a qualidade da banda larga o exemplo mais claro e evidente do tipo de adversidade a que estão sujeitas.
Ademais, não há como presumir a plena possibilidade de realização de audiências telepresenciais, sob pena de incorrer em distorções, como no caso de pessoas sem ou com parco acesso à internet, o que violaria, inclusive, o direito de ação e a garantia da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil — CRFB).
Em virtude disso, assim como já se posicionou a Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) em reuniões com a presidência do Tribunal Regional da capital paulista, não é à toa que a própria ABMT também vem se posicionando de maneira firme e com cautela quanto à indistinta adoção dessa medida. Recentemente, a ABMT oficiou o CSJT pedindo para que as audiências telepresenciais sejam facultativas. Em outras palavras, fundamentou que a excepcionalidade exige a presunção contrária, isto é, que por ora não é possível realizar esse tipo de expediente.
Nesse sentido, garantida a faculdade, óbices ou entraves suscitados por quaisquer das partes seriam evitados, bastando ao magistrado converter as audiências de instrução e unas em iniciais, ou promover o adiamento dessas para quando as plataformas virtuais de cada tribunal estejam minimamente compatíveis e ajustadas às peculiaridades de uma audiência trabalhista.
É necessária a manutenção da atividade no âmbito dos tribunais para assegurar a entrega do Direito aos jurisdicionados, ou ao menos que o bom andamento processual não seja prejudicado em compasso ao princípio da celeridade processual, fundamental para a Justiça do Trabalho pós-Emenda Constitucional nº 45/2004. Entretanto, em que pese a boa intenção do CSJT, representada pela publicação do Ato Conjunto nº 06/2020, que estabeleceu a audiência como atividade jurisdicional essencial, não é minimamente razoável implementar às pressas procedimentos que claramente possam resultar em mais problemas e, pior, em afrontas constitucionais, como ao direito ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da CRFB).
Como exemplos das obrigações emergencialmente implementadas que interferem na dinâmica e no rito da audiência trabalhista, é preciso citar algumas obrigações onerosas direcionadas aos patronos das partes. Alguns TRTs editaram atos e provimentos responsabilizando de forma exclusiva o advogado da parte pela estabilidade e qualidade da conexão da internet [2], tanto a do preposto, no caso da empresa reclamada, como das testemunhas a serem ouvidas. Mas não é só. Além de questões técnicas relacionadas à internet, há TRTs que exigem que os patronos forneçam máscaras, entre outros meios de proteção sanitária, àquelas pessoas que não possam ser ouvidas remotamente e que, assim, tenham que se deslocar até o fórum de sua localidade para prestar depoimento em uma sala em apartado ou sem aglomeração [3].
A distribuição de obrigações às partes e seus patronos como as citadas acima não garantem a efetiva prestação jurisdicional. Ao contrário, acabam criando óbices, na medida em que o advogado não conseguirá garantir a plena conexão à internet do seu cliente e nem sempre logrará êxito no ato de convencer uma testemunha a se sujeitar ao alto grau de contágio da Covid-19 apenas por ter que se deslocar de casa ao fórum para prestar um depoimento.
Dessa forma, o que se extrai de atos e regulamentos com tais disposições ainda é o despreparo de determinadas ou quase todas as unidades jurisdicionais para situações extraordinárias como a que vivemos. Além disso, e talvez mais problemático ainda, vale dizer que não há meio seguro que garanta que as partes e suas testemunhas não se comuniquem entre si durante uma audiência instrutória realizada remotamente, por exemplo, via WhatsApp. Ora, o fato de que cada parte, testemunha, advogado e juiz da causa estejam em locais distintos inviabiliza e não assegura, ao menos por ora, a parcialidade, a isenção, a observância ao artigo 848, §§ 1º e 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [4] e ao princípio da concentração dos atos processuais em audiência.
Enfim, são algumas das questões e dos problemas identificados após dois meses da decretação do estado de calamidade pública e da definição da pandemia como força maior para os fins trabalhistas (MP nº 927/2020). Ainda que toda a atividade jurisdicional seja imprescindível para os envolvidos, inclusive para os advogados, não é possível que nesse afã preceitos constitucionais básicos sejam ignorados, implicando em cerceamento de defesa, o que só poderia ser sanado pelo duplo grau de jurisdição, logo, tornando disposições da Emenda Constitucional 45/2004 letra morta, visto que é assegurado aos jurisdicionados a razoável duração do processo.
Por tudo isso, sem prejuízo da necessária modernização para implantação da audiência remota como meio de assegurar a prestação jurisdicional, de outro lado é também imprescindível que os princípios da boa-fé, da razoabilidade e da proporcionalidade baseiem a relação processual entre as partes, bem como a tomada de decisões dos magistrados, sobretudo durante o período de adaptação de todos os envolvidos a essa nova dinâmica social. Aguardemos.
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[1] Artigo 15 — As audiências e sessões telepresenciais serão conduzidas preferencialmente na Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais, instituída pela Portaria nº 61, de 31 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça.
§ 1º — O Tribunal Regional do Trabalho poderá utilizar outra ferramenta que garanta os mesmos requisitos daquela disponibilizada pelo CNJ, observando-se, ainda, no pertinente, o disposto nas Resoluções nºs 313 e 314 do Conselho Nacional de Justiça.
[2] O artigo 17 do Ato GP 07/2020 do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo dispõe: “A responsabilidade por conexão estável à internet, instalação e utilização do equipamento e do aplicativo de acesso à Plataforma Emergencial de Videoconferência para realização de audiências e sessões de julgamento é exclusiva do advogado”.
[3] Recente despacho proferido pelo juízo de Parnaíba no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho do Piauí determinou tais obrigações às partes para realização de audiência de instrução remotamente.
[4] Artigo 848 — Terminada a defesa, seguir-se-á a instrução do processo, podendo o presidente, ex officio ou a requerimento de qualquer juiz temporário, interrogar os litigantes (Redação dada pela Lei nº 9.022, de 5.4.1995).
§ 1º — Findo o interrogatório, poderá qualquer dos litigantes retirar-se, prosseguindo a instrução com o seu representante.
§ 2º — Serão, a seguir, ouvidas as testemunhas, os peritos e os técnicos, se houver
Tadeu Henrique Machado Silva é advogado e coordenador da equipe trabalhista do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.