Opinião

É preciso uma vacina jurídica para médico enfrentar colapso iminente

Atual cenário de calamidade exige norma ética específica e objetiva

13 de maio de 2020

Por André Damiani e Matheus Pupo*

Artigo publicado originalmente no Estadão

O ano de 2020 será lembrado pela pandemia do coronavírus, doença respiratória aguda cujos primeiros casos foram diagnosticados na China e se alastrou, rapidamente, para os demais continentes, deixando um rastro de vítimas fatais na Itália, Espanha e, mais recentemente, nos EUA.

O impacto desta emergência sanitária no Velho Continente é tão devastador que a Itália, em 19 de março deste ano, superou o número de óbitos confirmado no epicentro da calamidade (província de Hubei, China), muito embora possua um dos melhores sistemas de saúde pública do mundo.

A Itália, assim como outros países, não se preparou para o atendimento intensivo de uma concentração abrupta de pacientes. Por conta disso, não há médicos, remédios e respiradores artificiais suficientes ao enfrentamento do flagelo.

O elevado grau de calamidade atingido na Itália fez com que a Siaarti (Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva) emitisse norma ética, estabelecendo critérios específicos sobre “quais pacientes serão submetidos a tratamentos intensivos, quando os recursos não forem suficientes para todos ou quando eles não possuem a mesma chance de recuperação”, durante a pandemia da covid-19.

As autoridades médicas italianas, diferentemente do que se noticiou, jamais estabeleceram que os pacientes maiores de 80 anos, acometidos pela covid–19, seriam alijados de tratamento intensivo. Noutra direção, a Siaarti fixou 15 critérios, os quais deverão ser valorados pelo médico caso seja obrigado a escolher qual paciente receberá prioritariamente o tratamento intensivo (em razão da falta de equipamento ou de estrutura), sendo que o critério basilar determina que a escolha recaia sobre “aqueles com maior probabilidade de sobrevivência e, em segundo lugar, para aqueles que podem ter mais anos de vida saudáveis, com vistas a maximizar os benefícios para a maioria das pessoas”.

No Brasil, a regra geral determina o atendimento do paciente em situação mais grave, chamado de “vaga zero”, nos termos da Resolução n.° 2.077 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Todavia, para o contexto emergencial caracterizado pela carência de vagas (infelizmente muito comum em algumas unidades do SUS), é prevista a aplicação das disposições da Resolução CFM n.º 2.156, a qual estabelece, de forma escalonada, “critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva”. Segundo o art. 6º da referida resolução, existem cinco patamares de prioridade.

No primeiro nível estão pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.

O segundo grau de prioridade é o de pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e em nenhuma limitação de suporte terapêutico.

Já os pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica, situam-se no terceiro patamar de prioridade.

Por sua vez, no quarto grau de prioridade para receber atendimento médico estão aqueles pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica.

No quinto e último grau da escala de prioridade situam-se pacientes com doença em fase terminal ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, mas com a possibilidade de doação de órgãos ou tecidos.

Infelizmente, o grau de colapso do sistema de saúde que se espera durante o pico de casos da covid-19 jamais fora previsto; por conta disso, o médico será forçado a realizar a “escolha de Sofia” sobre a vida dos pacientes, ou seja, terá de optar por quem irá morrer e quem terá chances de sobreviver, o que é moral e emocionalmente devastador para um profissional da saúde.

Desta forma, necessária uma análise criteriosa sobre o estado de saúde do cidadão, buscando-se prevenir que pacientes de “baixa” prioridade ocupem leitos e insumos destinados a enfermos mais graves. Pior ainda, os médicos serão obrigados a promover internações tardias nas UTIs e altas médicas prematuras, sempre em contrariedade com os protocolos até hoje estabelecidos. Em reforço, acabarão por criar subníveis dentro de cada classe de prioridade, por conta própria, à margem da legislação do CFM; tudo isso visando salvar o maior número de pessoas.

Ocorre que tais ações poderão gerar nefastas consequências pessoais ao médico. Afinal, a atuação em desacordo com protocolos poderá ensejar a instauração de sindicâncias e processos administrativos. Além disso, o descontentamento de uma família, tendo em vista que seu ente querido não recebeu determinado tratamento de suporte à vida, dará causa ao ajuizamento de ações indenizatórias e a instauração de procedimentos criminais para apurar prática dos crimes de omissão de socorro (art. 135 do Código Penal) ou homicídio culposo (art. 121, §3º, do Código Penal), sob a acusação de negligência ou imperícia médica.

Por conta disso, o CFM ou o Ministério da Saúde deveriam, urgentemente, criar norma ética específica e objetiva para o atual cenário de calamidade sanitária, buscando-se “vacinar” o médico das consequências jurídicas de seus atos. Afinal, nada mais perigoso do que relegar a gabinetes climatizados, o julgamento de intervenções promovidas lá no front, em salas de emergência e UTIs abarrotadas de pacientes moribundos.

*André Damiani, criminalista, sócio-fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados, é especialista em Direito Penal Econômico

*Matheus Pupo, criminalista, sócio do escritório Damiani Sociedade de Advogados, é especialista em Direito Penal Econômico e Europeu

 

Notícias Relacionadas

Opinião

Ambiente digital e proteção de direitos autorais

Boa fase do streaming deveria implicar na melhoria de ganhos para músicos

Opinião

Acusado de improbidade administrativa tem direito ao silêncio

Representado também pode decidir quais perguntas prefere responder na audiência de instrução