Opinião

Empresas em dificuldade: Covid-19 e Cade

Órgão deve garantir novas chances de reinserção de investimentos

Por José Del Chiaro, Luis Claudio Nagalli G. Camargo e Irene Jacomini Bonetti*

Artigo publicado originalmente no Estadão

A inevitável crise econômica mundial decorrente da pandemia da Covid-19 resultará em inúmeros desafios para que as empresas não fechem as portas. Espera-se, nesse sentido, que as companhias busquem injeção de investimentos e redução de custos, o que consequentemente resultará em um aumento de aquisições, fusões ou associações envolvendo empresas em grave situação financeira ou mesmo em recuperação judicial. É preciso esclarecer, de plano, que por estar em trâmite o Projeto de Lei 1179/2020, que poderá alterar temporariamente o tratamento dado aos contratos associativos entre empresas, esse tipo de operação será abordada em oportunidade futura.

A Lei de Defesa da Concorrência brasileira (Lei 12.529/2011 – LDC) instituiu no Brasil o controle prévio de operações que se configuram como atos de concentração econômica (Art. 88, §2º). Nesse sentido, além de manter a obrigação da notificação obrigatória de determinadas operações, que incluem fusões e aquisições de empresas e ativos, a LDC também proíbe a consumação de atos de concentração econômica antes da aprovação final pela autoridade antitruste (Art. 88, §3º).

A consumação de um ato de concentração antes de finalizada a análise pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) configura prática conhecida como gun jumping, e é capaz de ensejar não apenas a imposição de multa pecuniária, mas também a declaração de nulidade da operação e abertura de processo administrativo contra as partes envolvidas. No ano de 2019, por exemplo, o Cade aplicou multa de R$ 57 milhões à IBM por ter concluído a compra da empresa Red Hat antes da aprovação pela autoridade no Brasil.

Em que pese a fácil compreensão do conceito de consumação em situações extremas, como a tomada de controle de uma empresa ou de uma planta fabril adquirida, a experiência nos mostra que a dinâmica empresarial e os diversos contextos econômicos trazem uma multiplicidade de circunstâncias em que a interpretação sobre se determinados atos configuram ou não gun jumping pode ser desafiadora.

Desde 2012, o Cade tem feito um ótimo trabalho traçando contornos aos limites do conceito de consumação em seus precedentes e no guia específico sobre o tema. Ocorre que a miríade de situações possíveis decorrentes de um mercado em desenvolvimento e da constante alteração de contextos econômicos faz com que o debate esteja também sempre vivo e em evolução.

Nesse sentido, nos parece ser imediata a necessidade de retomar a discussão sobre em quais circunstâncias a antecipação de pagamento ou pagamento de sinal poderiam ou não ser considerados como consumação prematura de operação antes do aval do Cade.

O Regimento Interno do Cade (“RICADE”) estabelece que as partes deverão manter as estruturas físicas e as condições competitivas inalteradas até a apreciação final da operação, sendo proibidas “quaisquer transferências de ativos e qualquer tipo de influência de uma parte sobre a outra” (art. 108, §2º).  No mesmo sentido, o Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica, publicado pelo Cade em maio de 2015, indica não configurarem como gun jumping: (i) pagamento de um sinal típico de transações comerciais, (ii) depósito em conta bloqueada (escrow) ou (iii) cláusulas de break-up fees (pagamentos devidos caso a operação não seja consumada).

Nesse cenário, em 2016 o Tribunal proferiu importante decisão ao considerar que o pagamento de sinal no contexto da operação envolvendo Reckitt Benckiser e a Hypermarcas (APAC 08700.005408/2016-68) não configuraria gun jumping. O entendimento do Tribunal foi o de que o pagamento equivalente a 20% do valor total constituiria sinal, e que tal prática seria comum às transações comerciais. Naquela oportunidade, o conselheiro relator, Paulo Burnier Silveira, ressaltou, a título de sinalização para o mercado, que “a regra é a proibição de pagamento antecipado não-reembolsável, sendo o sinal uma das exceções. Esta sinalização deve nortear a interpretação do Guia e das regras vigentes no país sobre o tema, tanto pela autoridade antitruste quanto pelos agentes do mercado”.

Em tempos como o presente, em que nos encontramos frente à uma severa crise econômica, o debate é especialmente relevante visto que a realização imediata de pagamentos em operações pode significar, em última instância, oportunidade capaz de ensejar investimentos que permitiriam a salvação de uma empresa com dificuldades por vezes determinantes para o seu fechamento. Ainda que o RICADE traga instituto de solicitação de autorização precária e liminar para consumação do ato de concentração em situações excepcionais, parece que existe espaço para discussão de melhores parâmetros que permitam a antecipação de pagamento, ainda que parcial, ou sinal, sem assoberbar a enxuta estrutura do Conselho que certamente estará bastante atarefada.

Assim, existem importantes argumentos a serem considerados para eventual permissão de antecipação de pagamento e sinal superior a 20%, decorrentes de operações cuja notificação ao Cade seja obrigatória, especialmente em situações que empresas estejam em situação de graves dificuldades financeiras.

Em primeiro lugar, parece que o adiantamento de pagamento para injetar investimento em empresas para garantir que o negócio sobreviva enquanto a compra não pode ser efetivada não aparenta trazer, em regra, preocupações concorrenciais relevantes. Em última instância, pode-se argumentar que se trata de ato pró-competitivo, ao garantir a manutenção de concorrente no mercado. Mais importante, é defensável que o adiantamento do pagamento não violaria a obrigação legal de manutenção das “condições de concorrência entre as empresas envolvidas”.

Além disso, à luz do precedente de 2016 e do RICADE, não seria difícil delinear contratualmente a garantia de que a antecipação de pagamento ou o sinal sejam reembolsáveis caso a operação não venha a ser aprovada pelo Cade. Cumpre esclarecer que os artigos 417 e seguintes do Código Civil já trazem previsões que indicam a possibilidade de devolução do sinal quando a inexecução do contrato não se deu por culpa de quem o pagou. Nessa situação parece, inclusive, que o sinal poderia ser ainda maior do que os 20% autorizados pelo Cade em 2016, desde que reembolsável.

A previsão contratual de reembolso, assim, possibilita que o ato do pagamento antecipado, ainda que parcial, ou o pagamento de sinal, seja completamente reversível em consonância com o precedente de 2016 e com as orientações contidas no Guia do Cade, podendo, assim, ser defendido como ato que não configura consumação da operação. As partes permaneceriam com estruturas completamente separadas e em eventual caso de desistência ou não aprovação da operação pelo Cade, a parte que antecipou o pagamento encontra guarida no Judiciário para reaver a quantia paga.

Desse modo, seria importante uma orientação mais clara sobre o tema pelo Cade, que permitiria aos administrados maior flexibilidade e segurança jurídica para prosseguir com negócios em meio à crise econômica que se seguirá. Não se trata, evidentemente, de afrouxamento dos critérios para permissão de atos aptos a gerar efeitos anticoncorrenciais no mercado. Seguiriam garantidas as separações existentes e permaneceriam vedadas as práticas que caracterizam gun jumping. No entanto, às empresas seriam abertas novas chances de reinserção de investimentos que podem, em última análise, garantir a sua sobrevivência e consequente manutenção de suas atividades.

*José Del Chiaro é sócio-fundador da Advocacia José Del Chiaro, foi secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça

*Luis Claudio Nagalli G. Camargo, possui mestrado (LL.M.) em Concorrência, Inovação e Proteção da Informação pela New York University. Sócio da Advocacia José Del Chiaro

*Irene Jacomini Bonetti é advogada na Advocacia José Del Chiaro

 

Foto: Iano Andrade/Portal Brasil/Divulgação

 

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