Por Antonio Carlos Aguiar*
Artigo publicado originalmente na ConJur
“Desaprender o que somos, sermos outro, para aprender direito o Direito”.[1]
Os dias atualmente vividos são diferentes de tudo que já vivenciamos antes e, em especial, se levarmos em conta que habitamos um mundo com tamanhas mudanças estruturais que estão na ordem do dia e que ainda estávamos começando a conhecer e nos adaptar (ou mesmo criticar).
Um mundo em que se transita (transitava) por meio de um espaço cibernético para se encontrar tudo.
Um mundo até então reconhecidamente tutorial de certezas. Um grande supermercado digital a oferecer as praticidades do como fazer: vídeos explicativos, aulas, manuais, pórticos exemplificativos etc. Uma interessante vitrine de mecanismos de atuação variados.
Um mundo que não nos deixava com muitas dúvidas.
Um mundo que tinha resposta para tudo. Que mostrava o que, como e onde fazer para se dar bem e conseguir aquilo que “era certo” dentro da visão indubitável imposta pela hipermodernidade e pela indiferença generalizada, em que o ter se sobressaía ao ser.
Um mundo que valorizava por isso mesmo, a padronização/stantardlização.
Um mundo que não reconhecia o óbvio, o Óblio[2].
Um mundo que ditava regras comportamentais para se obter sucesso: “comporte-se bem e adequadamente. Entrevistas de candidatos a emprego. Quantas ‘dicas’ são dadas/oferecidas aos candidatos, a fim de que ‘se comportem bem’ numa entrevista. Que impressionem. Apresentem o ‘seu melhor’. Que apresentem suas ‘qualificações e qualificativos’ que retratem quem ele é (ou quer/deva ser). E todas essas informações serão ‘guardadas numa ‘caixinha’.”[3]
E agora, mundo?
Aquilo que era tido como certo e inabalável foi simplesmente impactado por um vírus invisível, que simplesmente parou o mundo.
Uma paralisia que “transformou” (como se assim antes não fosse…) todos nós em iguais; reféns do desconhecido; de um “bicho desconhecido”: “Que bicho será esse? Vai ver é algum parente do Bicho-papão ou do Homem do saco.”[4] O que fazer agora: Ignorar, mitigar ou suprimir? “Hoje, no Brasil, muitos Estados estão tentando adotar a estratégia da supressão, enquanto o governo federal propõe mitigação com o isolamento de idosos. Tentar aplicar uma dessas estratégias[5] não é certeza de sucesso.”
Simplesmente não se sabe o que e como fazer.
O mais importante, contudo, é ter claro que as epidemias sempre “trouxeram trevas e iluminismo. Escureceu e acendeu. Nos bloqueou ou nos expandiu. Uma das nossas virtudes é a de ganhar sabedoria de experiencias negativas”.[6] Portanto, temos de desaprender e reaprender, mas e antes, ter a humildade de entender e saber dos nossos limites humanos e interpretativos, não apenas de nossas crenças, mas, também, dos vários dogmas tidos como inabaláveis, o que não é diferente para o Direito.
O status quo desta trágica situação dá e foco para o que já estava presente, mas encontrava-se na invisibilidade. Quanta discussão, teses e defesas contra e a favor da reforma trabalhista, por exemplo, que atingiu pessoas empregadas, com carteira assinada, com direitos mínimos trabalhistas de proteção, perpassaram por universo de pessoas que somente agora transmutam-se em gente que merece atenção. A lupa social direciona-se para essa gente com quem agora “tropeçamos”: dezenas de milhões de pessoas vulneráveis entraram no radar no governo com a chegada do coronavírus. Cerca de 75 milhões ganharam acesso à ajuda mensal de R$ 600,00 por três meses, com base no primeiro pacote de apoio aos mais necessitados[7].”
Esse número é extremamente significativo: 75 (setenta e cinco milhões) na informalidade (!), ainda mais se levarmos em conta que com carteira assinada encontram-se 11,6 milhões[8]: 15% dos invisíveis.
Sem dúvida alguma o Direito do Trabalho tem de enxergar essas pessoas “juridicamente invisíveis”. Os sindicatos dos trabalhadores têm de alcançá-las. Os instrumentos coletivos normativo-sindicais têm de abraçá-las. Negociar coletivamente com elas.
Lembremos: “a negociação se perfaz por meio de um encontro com princípios que garantem uma distinção qualitativa, com base em mandamentos de otimização formatados na maior e melhor medida do possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas disponíveis à resolução e composição de interesses, de maneira particularizada a cada situação, dentro de uma espécie de ecologia sindical, uma dinâmica científica que estuda as relações entre os atores sociais (trabalhadores — de vários matizes, inclusive, os agora denominados de hipersuficientes, sindicatos, representantes internos dos empregados, empresas e Estado) dentro do meio ou ambiente em que convivem e coabitam, bem como suas recíprocas influências, além de todas as alterações e mudanças, tecnológicas ou socioculturais, que alteram ou venham alterar condições de trabalho e de vida em permutas que acontecem e interagem neste universo de maneira diuturna, conforme as necessidades e momento de cada agente social envolvido” [9].
A ecologia sindical contempla todas as espécies de trabalhadores. Não faz sentido extirpar dessa proteção aqueles que mais necessitam.
Dentro desta nova lógica temporal e de compreensão trazida pelo vírus da mudança e conformação social, também se encontra espaço para observação de “destruição criativa”[10], que traz à tona uma nova e adequada visão para ética, “uma vez que o comportamento ético não é influenciado tão-só por ideias e doutrinas, mas também por modelos pessoais de vida, cujo valor exemplar serve de guia para o conjunto da sociedade”.[11]
Como bem destaca Cicero Urban, “vivemos hoje um novo problema, desconhecido de gerações passadas. Mas, também um momento em que velhos problemas não resolvidos tomam novas formas. A morte da ética, celebrada na pós-modernidade, e substituída pela estética, agora entra em crise profunda.” (…) Não somos morais graças à vida em sociedade, mas somos sociedade graças a sermos sociais. O nosso valor mais importante, e que precisa ser preservado, é o respeito ao próximo. Algo que ficou de lado muito tempo.[12]
Não há dúvidas que esse período desconhecido de pandemia, por mais que fisicamente tenha feito um “isolamento social”, aproximou não apenas as pessoas, mas os “seres humanos”. Deu luz aos invisíveis. Trouxe à pauta discussões quanto à sanidade e valorização do humano sobre a economia.
Soltou-se e com eco globalizado, uma voz social, num registro sonoro que, sem dúvida, tornou-se “polifonia atonal: dar voz aos que só têm — ou tinham — voz, a partir da partitura escrita por aqueles que os calaram — ou tentaram.”[13]
[1] Walter Ceneviva, prefácio ao livro A RECONSTRUÇÃO DO DIREITO Existência, Liberdade, Diversidade, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2003, p. 15.
[2] Filme: A Ponta (original The Point), de 1971, dirigido por Fred Wolf, em que, num reino incomum, onde toda a população tem cabeça em formato de ponta, nasce um menino (exceção) chamado Óblio, que tem cabeça redonda. Não obstante sua diferença, ele tem muitos amigos. Todavia, um conde mau e ciumento, acaba por entender que Óblio é mais popular do que o seu filho. E, deste modo, resolve expulsá-lo (juntamente com o seu cachorrinho Arrow) do reino. Ele é exilado para uma floresta afastada. Contudo, lá ele acaba tendo experiências incríveis. Conhece um homem com três cabeças, abelhas gigantes, uma árvore no negócio da venda de folha e uma pedra bem-humorada. Como lição, Óblio aprende que não é necessário ter uma cabeça pontuda para ter um propósito na vida. Participação especial de Ringo Starr como narrador.
[3] AGUIAR, Antonio Carlos: O Futuro do Passado do Direito do Trabalho no Brasil. Revista LTr, Ano 83, abril, 2019, São Paulo, págs. 422,423.
[4] Bandeira, Pedro. O Bicho-vírus. Jornal O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 2020, pág. H1.
[5] REINACH, Fernando. Ignorar, mitigar ou suprimir. Jornal O Estado de S. Paulo, 29 de março de 2020, pág. A20.
[6] PAIVA, Marcelo Rubens. Aprendendo com a Epidemia. Jornal O Estado de S. Paulo, 04 de abril de 2020, p. H8.
[7] Tropeçando na informalidade. Jornal do Estado de S. Paulo, 19 de abril de 2020, A3.
[8] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-02/informalidade-cai-em-janeiro-com-aumento-de-trabalhador-com-cnpj. Acessado em 25/04/2020, às 1410.
[9] AGUIAR, Antonio Carlos, Negociação Coletiva de trabalho. Saraiva. São Paulo, 2011, pág. 15.
[10] Termo utilizado em 1942 por Joseph Schumpeter no livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, apud Adriano Pires, Jornal O Estado de S. Paulo, de 18 de abril de 2020, pag. B2, Caderno de Economia.
[11] COMPARATO, Fábio Konder. ´´ÉTICA. Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno, Companhia das Letras, São Paulo, 2006, pág., 131.
[12] URBAN, Cicero. A ética dos nossos filhos depois da pandemia. Jornal O Estado de S. Paulo, 18 de abril de 2020, p. A2.
[13] Walter Ceneviva, prefácio ao livro A RECONSTRAUÇÃO DO DIREITO Existência, Liberdade, Diversidade, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2003, p. 15.