O Parlamento Europeu aprovou uma versão inicial de um projeto que visa regular o uso de inteligência artificial no bloco.
Conhecida como AI Act, a proposta tem como objetivo impor limites ao uso da tecnologia, protegendo a população contra ameaças à saúde, segurança, direitos e valores fundamentais.
As regras devem passar por várias negociações e demorar para entrar em vigor. Aqui no Brasil, advogados avaliam a medida como importante, mas fazem uma série de ressalvas.
Daniel Becker, sócio das áreas de Contencioso e Arbitragem, Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias do BBL, diz que o texto europeu traz medidas importantes à proteção de dados e ao combate à desinformação – “que se tornou um desafio ainda mais complexo com os sistemas miméticos, que reproduzem vozes e imagens em fotos e vídeos”. “Por outro lado, o AI Act também contém previsões extremas, que preocupam ao propor o expresso banimento de sistemas que sejam rotulados como “inaceitáveis” na cartela de 4 níveis de risco estabelecida pelo texto legal. A previsão posiciona-se em confronto aberto com o campo da inovação tecnológica e até mesmo esvazia a possibilidade de uma promoção parametrizada desses sistemas, inevitavelmente preferível ao imediato banimento”, pondera.
Para Becker, o maior desafio para a regulamentação do tema talvez seja definir, adequadamente, o que é inteligência artificial já que um “conceito minimizado pode deixar importantes entidades de fora do framework regulatório e um conceito excessivamente abrangente pode implicar no engessamento da área de inovações”. “Feitas tais ressalvas, há de se reconhecer que o AI Act é um projeto ambicioso e sinaliza um passo importante na criação de um ambiente regulatório adequado para o desenvolvimento e uso ético da inteligência artificial, fornecendo um modelo que pode servir de inspiração para outras regiões do mundo”, complementa.
Saulo Stefanone Alle, especialista em Direito Público e Regulatório do Peixoto e Cury Advogados, considera a regulamentação fundamental porque o “potencial de danos de ferramentas poderosas é muito grande”. “E a Europa foi capaz de compreender bastante cedo a importância de temas como o da Inteligência Artificial. Como os trabalhos já estão em pauta desde 2017, e foram organizados de maneira muito inteligente, percebe-se que o resultado é bastante maduro. O texto revela uma preocupação conceitual muito marcada de prestigiar o desenvolvimento da IA, ao mesmo tempo em que delimitou de maneira clara os aspectos de riscos que justificam restrições”, opina.
Gustavo Artese, sócio do Artese Advogados, especialista em proteção de dados e regulação digital, explica que o texto agora segue para os chamados “trílogos”, que têm por objetivo estabelecer consenso entre o Parlamento e o Conselho Europeus. “Em caso de aprovação da proposta do Parlamento pelo Conselho, o ato legislativo será aprovado e entra em vigor na União Europeia. Caso o Conselho rejeite a posição do Parlamento, a proposta é reenviada ao Parlamento para segunda leitura. Se as instituições não chegarem a um consenso sobre o texto, é convocado o Comitê de Conciliação, que possui o objetivo de chegar a um acordo comum sobre o texto, aceitável para o Parlamento e para o Conselho”, esclarece.
BRASIL
Artese entende que a aprovação, mesmo que parcial do AI Act na Europa, deverá impulsionar o processo legislativo brasileiro sobre Inteligência Artificial. Contudo, segundo ele, é imperativo que as discussões acerca do tema levem em conta as características econômicas e sociais do Brasil, de seu mercado interno, e principalmente, seus interesses geopolíticos em relação à tecnologia que promete mudar a cena econômica em nível mundial.
“O que mais levanta preocupações é a imposição, relativamente precoce, de obrigações relativamente sofisticadas para uma indústria nascente que pretende rivalizar com desenvolvedores de outras nações. O tempo é de subsídios e incentivos. Ainda não é a hora de imposição de mais obrigações além daquelas que as leis de consumo e normas de responsabilidade civil já propõem. Uma das propostas alternativas que mais parece fazer sentido seria a entrada do Brasil em discussões bilaterais e multilaterais, com a finalidade de aprovar Códigos de Conduta de adoção voluntária pelas organizações”, afirma.
Micaela Ribeiro, advogada da área de Direito Digital e Proteção de Dados do Medina Guimarães Advogados, avalia que a lei europeia promete ser o marco global da regulação da IA e “categoriza em escalas os riscos no uso da IA”. “Essa categorização permitirá dosar os possíveis impactos no uso do reconhecimento facial, por exemplo, e limitá-lo ou até mesmo proibi-lo, se necessário. É nítido que a intenção em regulamentar a IA não é gerar um retrocesso no desenvolvimento tecnológico. No entanto, não é acertado normalizar o crescimento desenfreado da IA, ignorando as consequências negativas que o acompanham”, comenta.
Micaela lembra que, no Brasil, o projeto de lei que seria o marco regulatório da IA tramita em passos lentos, “o que se mostra adequado, de certa forma, considerando o recente alvoroço causado por IAs generativas, como o ChatGPT que a todo momento ensejam no surgimento de situações jurídicas distintas”. “Ainda que se espere a promulgação de uma legislação específica sobre o tema, é necessário cautela e maior discussão para que a legislação não ignore pontos cruciais em relação à IA, de modo a encontrar o equilíbrio entre a evolução tecnológica e a proteção de direitos da personalidade”.