Por Mariana Chaimovich*
Recentemente, no contexto da minha atuação profissional em relações governamentais no Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário (ITCN), tenho me deparado com uma série de manifestações, da sociedade civil em geral e de setores da academia em particular, especulando sobre o fim do dinheiro físico e os impactos desse cenário para a população brasileira. Afinal, estamos mesmo caminhando para isso?
Principalmente após o crescente número de notícias sobre o Real Digital,[1] foi possível notar um aumento de textos de profissionais que afirmam, categoricamente, que o avanço tecnológico experimentado pela sociedade brasileira vai culminar no completo abandono do meio físico em prol dos pagamentos digitais. Essas manifestações devem sempre ser analisadas com cautela.
Em que pese o destaque e importância dos avanços tecnológicos que viemos experimentando, além da natural especulação sobre o futuro do dinheiro, há aspectos que precisam ser encarados com maior atenção. O primeiro deles, que gera muitas dúvidas para os usuários e usuárias de meios de pagamento digitais, é a diferença entre os conceitos de criptomoedas e CBDCs (Central Bank Digital Currencies). Embora elas, de certo modo, se pareçam por serem ambas virtuais (ou seja, não físicas), na prática as CBDCs e as criptomoedas são essencialmente distintas. A principal diferença encontra-se no fato de que, enquanto as criptomoedas não são emitidas nem tampouco reguladas por uma autoridade central, as CBDCs são, de fato, controladas pela autoridade monetária de um país. No nosso caso, no Projeto do Real Digital, o Banco Central do Brasil.
Isso quer dizer que todas as decisões a respeito de uma CBDC são centralizadas em uma única instituição, responsável por regulamentar seu funcionamento no contexto do país. As criptomoedas, por sua vez, são reguladas pela própria rede de usuários que a utilizam.
Finalmente, e tão relevante quanto, se por um lado as criptomoedas são muitas vezes percebidas como um ativo financeiro, as CBDCs podem ser compreendidas como uma modalidade de moeda na sua acepção mais tradicional, de dinheiro. O objetivo é, justamente, que elas sejam úteis para transações cotidianas.
Em segundo lugar, é preciso ter em mente que o Real Digital, quando implementado, tem sim o potencial benéfico de trazer uma nova gama de escolhas para a realização de pagamentos, o que poderá trazer facilidades para as pessoas digitalmente incluídas. Porém, apesar de ser parte da solução, ele não será um remédio absoluto para todas as burocracias existentes e para os desafios socioeconômicos brasileiros.
Ao utilizamos o dinheiro digital no processo de compra e venda de imóveis, por exemplo, certamente teremos vantagens em relação a outras formas de transferência eletrônica (como TED e DOC, ou até mesmo o Pix). Contudo, ainda precisaremos (i) ir ao Tabelião de Notas para celebrar a escritura de compra e venda do imóvel; (ii) transferir o dinheiro; (iii) passar a escritura para o Cartório de Registro de Imóveis, para que, só então, a propriedade seja transferida.
Nesse sentido, a realidade e a segurança jurídica desses trâmites não são dependentes, exclusivamente, da maneira como o dinheiro é transacionado, se física ou eletronicamente. E esses procedimentos continuarão a existir, pelo menos a médio prazo no Brasil, ainda que tenhamos mais opções e escolhas aos usuários e usuárias sobre como realizar os pagamentos inerentes às transações.
Finalmente, nesse cenário de transações digitais, não pode ser desconsiderada a realidade dos mais de 34 milhões de brasileiros e brasileiras desbancarizados, que simplesmente não têm acesso às facilidades que cidadãos mais privilegiados de fato possuem.[2] Também, das 35,5 milhões de pessoas sem acesso à internet em nosso país.[3]
No último dia 15 de março, Dia do Consumidor, o ITCN lançou a hashtag #pagodomeujeito, que preza pela convivência entre os meios de pagamento e revela o desafio de inclusão do Brasil. Visa também defender o poder de escolha dos consumidores, direito garantido, inclusive, pela nossa Constituição, por intermédio do próprio Banco Central.
Projeções exclusivamente voltadas para o fim do dinheiro físico no futuro próximo demonstram que ainda temos muito trabalho pela frente, seja em relação à necessidade de conscientização das diversas realidades dentro de um país tão grande como o Brasil, seja em prol da harmonia entre os mais diversos meios de pagamento. Isso, sempre prezando pela acessibilidade dos cidadãos e cidadãs, considerando sempre as condições e contextos, sociais e econômicos em que estão inseridos.
*Mariana Chaimovich é advogada, legal advisor no ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), colaboradora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, Doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP e Mestra em Direito Internacional pela mesma instituição.
[1] Mais informações sobreo Real Digital podem ser encontradas em: https://aprendervalor.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/real_digital. Acesso: 17 mar. 2023.
[2] Informação disponível em: https://valorinveste.globo.com/produtos/servicos-financeiros/noticia/2021/04/27/34-milhoes-de-brasileiros-ainda-nao-tem-acesso-a-bancos-no-pais.ghtml. Acesso: 17 mar. 2023.
[3] Informação disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/em-2021-82-dos-domicilios-brasileiros-tinham-acesso-internet. Acesso: 17 mar. 2023.