Por Ana Paula Ávila (foto)*
Haja paciência para reconhecer que ainda precisamos de iniciativas como a do governo federal, de propor regras que proíbam a diferença salarial entre homens e mulheres no país – o setor jurídico da Casa Civil já analisa a proposta e o seu envio ao Congresso pode ocorrer ainda neste mês. Se pensarmos que em 1999 a CLT foi alterada para proibir a consideração de sexo, idade, cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional, termos que revisitar o tema em 2022 é sintoma de que estamos andando a passos muito lentos em termos de igualdade.
Já em 2008, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrava que, se as políticas de igualdade de gênero não fossem aceleradas, seriam necessários 87 anos para igualar salários de homens e mulheres. O cenário é desanimador, ainda mais quando se percebem grupos que sequer enxergam (ou se recusam a enxergar) que a desigualdade de gêneros existe.
Até 1960, o trabalho das mulheres consistia substancialmente na prestação de serviços pessoais, por funções como as de costureiras, doceiras, empregadas domésticas, e em funções manuais não qualificadas (“blue collar”). Nos escritórios, as mulheres ainda ocupavam os postos de secretária e de copeira. Foi na década de 80 que se observou o crescimento da ocupação de cargos mais qualificados por mulheres — “white collar” –, à medida que avançavam das secretarias para ocupar as posições de advogadas, médicas, dentistas, engenheiras etc. (Avila, A.P. e Souza, P.V.M. 2017).
Em que pese esta evolução, muitos desafios subsistem na questão da paridade salarial, principalmente quando considerado o recorte de raça ao lado do gênero, porque as mulheres negras ainda estão a um longo caminho da efetiva inclusão. Há estatísticas recentes do IBGE demonstrando que ainda hoje há mulheres que recebem menos do que os homens e os negros recebem menos que os brancos.
No momento presente, as mulheres vivenciam o salto da casa e do mercado de trabalho para ocupar espaços políticos, aqueles espaços onde as decisões são tomadas. Não se trata apenas do espaço público — e o Brasil já elegeu uma mulher presidente -, mas também das empresas, onde os conselhos de administração passam, timidamente, a ser ocupados por mulheres. Esse movimento ganha agora novo impulso a partir da intenção manifestada pela B3 de estabelecer regras para que as companhias listadas elejam ao menos uma mulher e um representante de grupos minorizados nos seus conselhos ou diretorias estatutárias.
Conquanto se percebam muitos avanços, importantes desafios persistem: basta pensar que as mulheres no Brasil compõem 51% da população e ocupam apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional e, segundo dados do Brasil Board Index (2021), apenas 14,3 das posições em Conselhos das empresas listadas na B3. Hoje, no Brasil, dos 513 deputados, apenas 77 são mulheres, 27 a mais que na legislatura anterior. No Senado, mulheres ocupam 12 das 81 cadeiras. O dado quantitativo é devastador, e precisa ser considerado quando se ouvem críticas a respeito da política de cotas para mulheres nos espaços públicos e privados.
Além disso, uma inclusão formal (numérica) seria um passo importante, mas não basta. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) fez um estudo indicando que o aumento dos cargos ministeriais ocupados por uma mulher não correspondeu, necessariamente, a um aumento de poder ou melhoria no desenvolvimento das políticas para o avanço do feminino. A pesquisadora Eglé Blanco explica: o fato de que Ministras mulheres disponham formalmente de uma parcela de poder não significa o seu exercício fático (Blanco, 2008). De fato, as mulheres não costumam ser incluídas em espaços decisórios mais restritos e informais, como o convite para o uísque ao final do expediente, para almoços ou jantares. Em muitos casos, as decisões que serão efetivamente formalizadas são definidas nesses momentos permeados pela “broderagem”.
Ainda, explica-se a desigualdade na participação de mulheres no mercado de trabalho por meio de um senso comum fundado em algumas falácias, tais como “o salário das mulheres é menor porque seu custo de contratação é mais alto”. Esse tipo de explicação se baseia em um número de filhos maior que o real, sem falar que o custo da licença-maternidade é suportado pela Previdência Social, e não pelo empregador. De fato, é muito comum ouvirmos, como justificativa para a discrepância entre a remuneração feminina e a masculina, o argumento de que os gastos do empregador são maiores no caso das mulheres, por causa das proteções especiais concedidas pelo direito do trabalho. Neste ponto, cabe notar que o salário-maternidade é um benefício previdenciário em favor da segurada, portanto suportado diretamente pela Previdência Social (Andreucci, A. P. T., 2012, p.39).
Há também os estereótipos de gênero, os quais atribuem à mulher a domesticidade e a afetuosidade, do que se infere sua maior vocação para o cuidado do lar e da família como algo que faz parte de sua própria natureza, diferente do papel de provedor atribuído ao homem (idem, p.106). Esse estereótipo destoa da realidade: dados do IBGE apontam que 38% dos domicílios brasileiros possuem uma mulher como pessoa de referência provedora. Esses estereótipos também explicam a atribuição desproporcional de papéis e tarefas desempenhadas na família, em que as mulheres assumem mais trabalhos domésticos que os homens a partir de um referencial culturalmente aceito de que isto “é coisa de mulher”.
Tudo considerado, de um lado, justificam-se os salários inferiores às mulheres porque, no senso comum, elas não são as principais provedoras da família; de outro, prefere-se o empregado masculino por presumir-se sua maior dedicação ao trabalho e a menor chance de afastamento por ter de se dedicar presencialmente aos filhos (Lopes, C.M.S., 2006, p. 428). Apesar de ultrapassados, estereótipos ainda dificultam tanto o acesso das mulheres aos postos de trabalho quanto as suas chances de ascensão profissional.
Comparativamente ao passado, parece inegável a ampliação na participação da mulher no mercado de trabalho. Essa realidade, em grande parte possibilitada pela possibilidade de planejamento familiar e pelo aumento no grau de escolaridade das mulheres, é fruto de uma progressão bastante lenta que ainda requer medidas afirmativas para que seja atingida a almejada igualdade de gênero no mercado de trabalho.
Ana Paula Ávila é sócia coordenadora da área de Compliance de Silveiro Advogados, mestre e doutora em Direito pela UFRGS, mestre em Global Rule of Law pela Universidade de Gênova (Itália) e especialista em Gestão de Crise e em Cibersegurança para Gestores pelo MIT (EUA).