Opinião

‘Negociação’ individual para redução de salário e jornada de trabalho

Momento excepcional determina adoção de medidas não convencionais

9 de abril de 2020

Por Antonio Carlos Aguiar e Otavio Amaral Calvet*

Artigo publicado originalmente na ConJur

Não há que se discutir acerca do momento atípico que vivenciamos. O direito positivo já reconhece o estado de calamidade pública e a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19), respectivamente por intermédio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da Lei nª 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Igualmente, constitui fato público e notório a adoção da prática de isolamento social que afeta, direta e indiretamente, a manutenção das atividades empresariais pela impossibilidade de funcionamento determinada pelo Poder Público e, ainda, pela drástica redução da demanda, tudo a afetar o desenvolvimento da economia.

O momento excepcional, portanto, determinou a adoção de medidas não convencionais pelo Governo Federal para enfrentamento sistêmico desse estado de exceção, que impinge efeitos para toda a sociedade, na medida em que o comportamento do todo teve que ser regulado (medidas de isolamento social são exemplares neste sentido), a fim de prevenir de modo regular e previsível, não apenas o modo de agir (trabalhar, se comportar), mas, afinal, a vida das pessoas; todos aqueles que pertencem à sociedade, partes de um todo. Neste sentido e dentro deste comando maior, também normas trabalhistas foram criadas, por meio da edição de Medidas Provisórias, notadamente as de números 927, 936, 944 e 945.

Dentre os diversos dispositivos criados, pretende-se especificamente aqui analisar a possibilidade de realização de redução de salário, com a proporcional redução de jornada, e a suspensão dos contratos de trabalho mediante acordo individual, vez que, em “condições normais de temperatura e pressão”, em tese, a Constituição da República exigiria sempre a via da negociação coletiva como forma de se estabelecer a redução de salários.

Contudo, e antes mesmo de adentrarmos neste ponto em particular, há de se registar e destacar que a sociedade se põe diante de uma situação absolutamente inusitada, em “que houve um completo e abrupto reset global, como se o mundo tivesse sido tirado da tomada. Faltou energia e, quando ela voltar, teremos de fazer o rebooting para uma nova realidade”[1].

Por isso mesmo, qualquer entendimento sobre a aplicação dessas medidas globais, emergenciais e complementares deve se dar sob a ótica global e concreta deste estado caótico, de força maior instalada, na busca da solução conjunta e comunitária que tem que se dar obrigatoriamente de maneira ampla e assertiva para toda sociedade.

Afinal de contas, “a ideia do Direito é prática, desde sua origem. Se sua finalidade é regular a vida social, evitando conflitos, resolvendo as dimensões individuais ou grupais, fazendo prevalecer o que de melhor exista (em certo momento histórico) (…), então compreende-se que não possa ele permanecer em estado de concepção, nem reserva mental. Para ter efetividade e produzir os efeitos desejados, o Direito há de ser aplicado, ou seja, posto em prática. Aliás, não é difícil entender-se a situação do Direito, já que, como parte da vida social, tem ele de ser essencialmente prático. Não pode ser contemplativo, nem viver de mera elucubração, pois, se assim o fosse, jamais poderia atingir o seu fim, a finalidade a que se destina e para que foi criado.,”[2]

Para se compreender a dimensão do fenômeno, a interpretação dos artigos da MP 936 que autorizam a celebração de acordo individual (7º, II; 8º, §1º; 11 e seu §4º; 12 e seu parágrafo único) tem que se realizar a partir de uma premissa que, bem observada, demonstrará o acerto da via escolhida e a preservação do texto constitucional: não existe, no estado de calamidade pública que vivemos, o conflito coletivo de trabalho que exige a negociação coletiva.

A fim de se fundamentar tal afirmativa, torna-se necessário relembrarmos o conceito de conflito coletivo, de forma a se verificar se a questão posta na atualidade advém de uma insatisfação dos trabalhadores para com os seus empregadores, em razão de um desequilíbrio econômico derivado da pactuação contratual do fornecimento contínuo da energia de trabalho, aproveitada no interesse da produção (do capital), ou de algo completamente diferente e novo.

A necessidade incontestável das empresas paralisarem e/ou reduzirem suas atividades tem a ver com medidas governamentais de preservação da vida dos membros da sociedade. E, justamente em razão desta inviabilização econômica do negócio empresarial para o bem de todos, também restaram mitigados prováveis efeitos desastrosos para o conjunto dos trabalhadores (que nada mais são que seres humanos trabalhadores), como um desemprego em massa. Daí porque essas medidas trazem contrapartidas, estas recaindo tanto sobre o empregador quanto o governo, para suprir necessidades mínimas de renda ao trabalhador, a fim de manter sua sobrevivência. Frise-se: renda, não necessariamente salário.

O conflito coletivo de trabalho, segundo as lições clássicas, é caracterizado por manifestações coletivas que expõem uma divergência de interesses entre a categoria de trabalhadores e de empregadores, pressupondo a manifestação desta divergência (seja por declarações dos envolvidos, seja por comportamentos sociais reveladores, como paralisações, ameaças etc.). Por outro lado, o interesse coletivo difere da simples totalização de interesses individuais, já que possui conotação própria, como manifestação da vontade coletiva que autoriza a negociação, também coletiva, como expressão desta autonomia.

No caso que ora enfrentamos, não se observa a existência de um conflito coletivo, simplesmente porque não há divergência entre os interesses de cada uma das categorias, mas convergência na necessidade de alternativas para manutenção de ambos os envolvidos, a empresa na sua atividade e o empregado na sua dignidade (sobrevivência digna).

Trata-se de mera conformação de interesses convergentes, por força (maior) de fato totalmente estranho à vontade das partes. Não há, nesse caso, barganha, mas medidas de exceção para estabilização do país. E a opção de resolução é estatal, no seu legítimo papel, para fins de enfrentamento comum da sociedade como um todo, e não apropriada para determinados contratos individuais.

Em conclusão, válida a pactuação individual para a redução de salários e jornada e para suspensão dos contratos nos exatos termos da MP 936/20. O momento é para a efetiva prática do Direito com responsabilidade e, não, para exercícios teóricos e “acadêmicos” desconectados da realidade. E o tempo urge.

Antonio Carlos Aguiar, do Peixoto & Cury Advogados, é mestre e doutor em Direito do Trabalho, titular da cadeira nº 48 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

Otavio Amaral Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP e presidente da ABMT — Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho.

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