Em entrevista às advogadas Mariana Chaimovich e Thaís Zappelini, respectivamente legal advisor e consultora de Relações Governamentais do ITCN (Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário), o rapper Dudu de Morro Agudo (foto), CEO na Hulle Brasil, doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador Executivo do Instituto Enraizados, fala de educação financeira, da relação do cidadão periférico com o dinheiro e quais os impactos da questão racial nesse contexto. O Enraizados usa as artes integradas do hip hop como ferramenta de transformação social e busca a formação artística e cidadã, bem como proteção os direitos, bem-estar e qualidade de vida do cidadão periférico
Por prezar pelo diálogo com especialistas, empresários, acadêmicos e empreendedores, o ITCN conversou com Dudu para saber qual era a sua perspectiva sobre tema tão relevante. Seguem trechos selecionados dessa entrevista:
O que precisa estar presente numa formação cidadã quando pensamos no bem-estar e qualidade de vida do cidadão periférico?
Acredito numa formação cidadã na perspectiva de Paulo Freire, quando o mesmo diz que precisamos criar mecanismos para desvelar o mundo, isto é, atividades que conscientizem o cidadão periférico de sua situação concreta, real. No Instituto Enraizados, chamamos isso de formação política, e uma prática comum nas nossas atividades são as rodas de conversa, onde podemos trocar ideias e produzir conhecimento de forma horizontal, aprendendo e ensinando simultaneamente sobre a nossa própria realidade a partir de diferentes pontos de vista.
Como é a relação dos cidadãos periféricos com o dinheiro? Você tem uma percepção específica dessa relação quando estamos falando de “dinheiro vivo”, em espécie?
Na minha percepção, a relação do cidadão periférico com o dinheiro é uma relação conturbada, pois o dinheiro continua sendo tabu, é uma eterna busca que se relaciona com necessidade de sobrevivência e realização de sonhos, uma relação de gato e rato. Não saber colocar preço em seu próprio trabalho é um dos principais problemas, assim como gastar mais do que ganha, e isso está diretamente vinculado com a ausência de uma educação financeira no decorrer da vida.
Qual a importância do dinheiro em espécie para o cidadão periférico?
No meu entendimento, o dinheiro em espécie é uma realidade na periferia principalmente para as pessoas mais velhas, que não têm acesso a conta bancária ou não conseguem lidar com aparelhos eletrônicos e seus aplicativos, e, também, por causa dos pequenos estabelecimentos e prestadores de serviços que não aceitam outras formas de pagamento.
Como a questão racial impacta nos espaços econômicos desses cidadãos?
Infelizmente, a questão racial é definidora, no Brasil, nessa relação da população de periferia com o dinheiro. Em termos estatísticos, a população negra é o grupo de pessoas com maior evasão escolar, consequentemente com menos formação acadêmica, e que por isso ocupam os espaços de subalternidade da sociedade.
Hoje em dia, muito se fala em educação financeira e sua importância. Porém, muitos projetos apresentam propostas inacessíveis e afastadas de boa parte da população, sem guardar muita relação com seu cotidiano e necessidades específicas. Nesse sentido, como podemos trabalhar em iniciativas efetivas, que de fato tragam instrumentos úteis no âmbito da realidade periférica, na qual boa parte dos brasileiros vive?
Existe uma influencer aqui na cidade de Nova Iguaçu chamada Nath Finanças (https://www.youtube.com/@NathFinancas), que ficou conhecida nacionalmente por causa de seus vídeos no YouTube que tratam de educação financeira para população periférica. Acredito que a tática que a Nath utilizou foi perfeita e por isso muitas pessoas, principalmente mulheres de periferia, a seguem nas redes sociais e seguem seus ensinamentos religiosamente. Num primeiro momento a Nath explicou coisas básicas de como as pessoas podem (e devem) controlar seu dinheiro, ensinou que devemos gastar menos do que ganhamos, para tomarmos cuidado com o cartão de crédito, explicou o que são os juros, os juros sobre juros, o cheque especial, explicou sobre outros tipos de crédito e por fim começou a explicar sobre investimentos que rendem mais que a poupança, como tesouro direto, CDB e outros mais. Essas informações normalmente não estão acessíveis para a população periférica.
O público-alvo do Enraizados são jovens, com idade entre 16 e 29 anos, que fazem parte dos cursos de iniciação artística, de produção cultural e do curso pré-vestibular, que estão começando a lidar com o próprio dinheiro.
A nossa formação cidadã — ou formação política, como chamamos — passa primeiramente pela ideia da conscientização, de entendermos quem somos, qual o lugar que ocupamos na sociedade, e a partir daí entramos de diversas formas diferentes, e possíveis, nesta área do planejamento financeiro, pois entendemos que é vital para a qualidade de vida do cidadão periférico. E aprendemos com a Nath Finanças que os assuntos abordados nessa formação devem partir da demanda dos próprios participantes, a partir dessa conscientização e desse auto(re)conhecimento.
O Instituto Enraizados propõe o desenvolvimento de artes integradas do hip hop como ferramenta de transformação social. Poderia nos contar melhor como este processo funciona?
No Instituto Enraizados nós utilizamos as artes integradas do hip hop (rap, break, DJ e graffiti) para discutir a nossa própria realidade, para desenvolver um olhar crítico sobre a sociedade, a partir de uma perspectiva preta e periférica.
Todos os nossos projetos partem de uma lógica antirracista, onde o nosso objetivo inicial é perceber a sociedade que temos e projetar a sociedade que queremos. Isso começa de forma fragmentada, onde propomos o exercício de pensar o mundo a partir do nosso bairro, ou seja, o bairro que temos e o bairro que queremos, na perspectiva freireana de “denúncia e anúncio”, onde denunciamos o que não está de acordo com o que acreditamos e anunciamos uma nova possibilidade possível.
Nossa ideia com isso é criar narrativas anti-hegemônicas, que vão além daquilo que é reproduzido pelo senso comum sobre o nosso território, e essas narrativas podem ser a partir dos elementos do hip hop.
O Enraizados tem como visão promover o protagonismo da juventude. Poderia nos contar mais sobre o impacto das atividades do Instituto na vida desses jovens?
Estamos há 23 anos atuando com as juventudes das periferias, seguindo sempre a mesma lógica de trabalhar a partir das demandas trazidas por essas juventudes. A função do Instituto Enraizados é incentivar, para que esses jovens proponham as ações que desejam realizar, individualmente ou em coletivo, e promover um processo de emancipação desses jovens a partir dessas atividades.
Atualmente o calendário de atividades do Instituto Enraizados é composto em sua maioria por atividades externas, de jovens que foram formados pela instituição, mas que continuam produzindo suas atividades em parceria conosco, em outros coletivos, em espaços públicos e privados, movimentando a economia local, colaborando com a segurança pública, preservação e conservação do patrimônio público etc.
Teria dezenas de exemplos para citar, mas três me chamam mais a atenção, que são: A Batalha de Morreba, uma roda cultural que acontece quinzenalmente na praça de Morro Agudo, em Nova Iguaçu, e mobiliza cerca de 500 jovens por edição; o “Estúdio Nuvem” e o “Novo Nojo Musical”, duas produtoras que nasceram dentro do Instituto Enraizados e que agora seguem seus caminhos, produzindo centenas de jovens artistas do hip hop da Baixada Fluminense, cada uma com um modelo de negócios diferente.
O Instituto Enraizados possui uma série de iniciativas e parcerias. Poderia nos contar sobre as principais iniciativas que contribuem para a formação e aperfeiçoamento de habilidade da juventude, em termos de inclusão social e educação financeira?
Realmente são muitas as nossas ações, mas acredito que as principais, nessa perspectiva de inclusão social e educação financeira são três — primeiramente o CPPEC (Curso Prático de Produção de Eventos Culturais), onde um grupo de 30 jovens participa de todo o processo de produção de um festival multicultural e colaborativo chamado Caleidoscópio.
Considero esta ação importante, pois, para muitos desses jovens, é a primeira vez que têm algum tipo de relação com o poder público. Como o festival acontece dentro da comunidade, e cerca de mil pessoas vêm para o bairro para o festival, eles precisam também desenvolver uma relação mais profunda com os moradores e comerciantes. Ou seja, esses jovens começam a desenvolver habilidades de liderança e um olhar crítico sobre o bairro/cidade, entendendo também o quanto essa atividade movimenta financeiramente o bairro.
Nessa mesma perspectiva acontece o projeto MBMA (Meu Bairro, Meu Ambiente), onde os jovens precisam olhar criticamente para o bairro para produzir narrativas contra-hegemônicas através da fotografia, olhar para o que o bairro tem de belo, de potência, quais são as riquezas do território, seus símbolos e personagens. Mas sem negligenciar os problemas, apontá-los e propor soluções em parceria com moradores, empresários e o poder público.
Existem outros projetos que trabalham também nessa perspectiva de formação política e desenvolvimento do olhar crítico através da arte, como o RapLab, que é uma atividade de produção do conhecimento em rede através do rap, que realizamos com crianças e jovens de escolas públicas da região da Baixada Fluminense, e também na formação de professores e educadores populares, a fim de colaborar para a diminuição da evasão escolar, pois acreditamos que que quando uma criança, um adolescente ou um jovem deixa de frequentar a escola, ele está automaticamente definindo qual o espaço ele vai disputar na sociedade no futuro, e esse é um lugar de subalternidade.
O Instituto Enraizados desenvolve também o projeto de uma incubadora chamada Hulle Brasil, que é um híbrido de produtora, estúdio e agência, onde os profissionais formados pelo Instituto são contratados para trabalhar em projetos internos e externos. Nessa equipe temos além de artistas (rappers, bailarinos, bailarinas, grafiteiros, DJs etc.), fotógrafos(as), cineastas, produtores(as) culturais e musicais, beatmakers, arte educadores etc. No ano de 2022 essa incubadora movimentou cerca de R$ 300 mil.
Foto: Reprodução/Instagram